Changara, 21 Abril 1972: Hoje é sexta-feira, mas bem podia ser terça, ou ate domingo, que nenhuma diferença faz. Aqui todos os dias são cansativamente iguais. Aqui, nesta Changara perdida no cruzamento entre Tete, Vila Pery e a fronteira da Rodésia, onde vamos todos os dias, o tempo parece ter estagnado, como se o diabo aqui tivesse sentado arraiais. ... Não anda, parece ter parado no dia em que chegámos. Aqui o tempo não existe!
Mas hoje é dia de coluna até à Rodésia, a fim de escoltarmos as viaturas civis e os camiões TIR que seguem para o Malawi carregados de mercadoria vinda da África do Sul.
- Estás porreiro, Pensador? – Pergunta o Fonseca. Sempre desafiador, o meu bom amigo Fonseca. Sorrio ao vê-lo de lenço preto ao pescoço, o que sempre acontece todas as vezes que sai para o mato. Gosto de vê-lo assim, aquele lenço preto ao pescoço confere-lhe um ar de pequeno guerrilheiro.
Respondo-lhe -lhe que sim, mas a verdade é que não estou. Sinto-me doente. Mas da alma, porque o corpo, apesar das dores, vai aguentando.
- Vamos embora, temos muito para andar! – É o Xico Trovoada no seu vozeirão, sempre a protestar mas sempre solicito a todas as eventualidades.
Tem razão, hoje vai ser um dia deveras cansativo e longo. Saímos tão cedo e só regressamos ao quartel ao fim do dia, já com a noite caída. Embora ainda tão cedo o sol já aquece. Sem dúvida vai estar um dia muito quente, muito perto dos 40 graus como tem sucedido nos últimos dias. Este calor húmido mata o corpo e esgota-nos a paciência.
- Não se preocupe, hoje os turras não atacam. Como atacaram ontem hoje descansam...
É o Tocha, sempre bem-humorado, sorrindo com aquele rosto onde mal chegou o sol tórrido de Tete. Lá da frente, da Berliet, que abre a coluna, fazem-me sinal de que está tudo em ordem. Também dos dois “Pinchas” 411, que seguem atrás de mim, dizem o mesmo. Vamos, então! E que Deus nos acompanhe!
Levanto a mão para a Berliet e a coluna põe-se em marcha. Enfio o quico no bolso para que o ar fresco da manha possa bater-me no rosto. Preciso de encher a alma de ar puro, preciso de sentir o cheiro da selva e do capim entrar no meu ser, revigorando o inconformismo e a solidão. Preciso de fechar os olhos e recuperar a energia dos meus sonhos deixados lá no “Puto” ...
Há um ano que cheguei cá. Estou, pois, a meio da comissão. Falta tanto tempo para o final! Nem quero pensar, ou então endoideço de vez. Nesta guerra, como agora em que sigo a caminho da Rodésia, sentado literalmente em cima de sacos de areia, postos ali como protecção em caso de rebentamento de alguma mina, aprendi que o segundo seguinte não me pertence. Aprendi que apenas sou dono deste preciso segundo, porque o segundo seguinte poderá já não ser meu... Uma mina ou um tiro vindo do capim ou detrás duma rocha muda meu destino num segundo...
Dói-me a alma, dói-me o corpo, dói-me tudo! Dói-me ate o simples cansaço que se alojou em mim qual paludismo maquiavélico. Tenho saudades de casa, da minha família, dos meus amigos. Estou farto desta guerra e deste Moçambique tão distante de minha casa! Por isso a alma sofre. E interroga-se. Valerá a pena todo este sacrifício? Na minha cabeça, qual tic-tac dum relógio prestes a avariar, uma pergunta que não me larga e insiste, caprichosa, em me atormentar. A todos quantos, como eu, cumprem o dever de virem para cá, como nos chamará a posteridade? Heróis ou cobardes?
Alfredo Maioto