Mais um excelente “Escrito” do meu Colega e Amigo A.
Maioto.
Este trabalho é um exemplo daquilo que aconteceu a
milhares de colegas nossos, durante o período da guerra colonial.
DORES SEM NOME
Em mim a noite mais
escura de toda minha vida. Todo meu ser foi arrastado para uma escuridão de
sombras sinistras como se alguém, maquiavelicamente pérfido, tivesse queimado todo
meu corpo de luto. Atónito, perplexo, no meu triste enlouquecer as dores nem me
permitiam sequer chorar, que seria um bálsamo, e os pensamentos, esses, ziguezagueavam
no fundo do mundo que afinal era tão só a enormidade desfigurada da minha alma!
Maquinalmente deixei
escorregar o corpo, pesado como uma Berliet, para o chão barrento e encostei-me
ao embondeiro enorme, de ramos fortes e tronco corpulento, alargando a vista
pelo acaso onde o sol se desvanecia a cada segundo…
Então tu chegaste. Silencioso,
sem proferir uma letra sequer ao ver-me assim prostrado, e sentaste-te a meu
lado, ficando depois mudo a observar o por do sol por cima das copas das
árvores. Para nós, naquela tarde qualquer dum dia sem nome, naqueles instantes
o tempo não existia, e se existisse nós éramos os senhores absolutos para
podermos destrui-lo ou compô-lo a nosso bel-prazer. A dor dilacerava-me as
entranhas…
Sem te olhar
estendi-te o aerograma que segurava nas mãos, e pelo canto do olho acompanhei
sem querer, desinteressadamente, o teu gesto em abri-lo com calma já prevendo o
pior e depois a leitura. Leste-o duas vezes. Depois, com a mesma calma com que
o abriste, fechaste-o com um carinho comovente como se duma relíquia se
tratasse, pousando-o depois na mão que eu estendi.
Nada disseste. Nem uma
letra sequer, nem um som! O sol já se tinha ido embora deixando em sua
substituição os primeiros tons da noite. Pareceu-me, na solidão do tempo em que
mergulhei, que minhas dores nunca mais iriam sarar, e a cada segundo que
passava elas aumentavam de tamanho. E uma lágrima, e várias, e muitas, sustidas
até aí a tanto custo, finalmente irromperam de meus olhos molhando a camisa do
camuflado que envergava. E chorei como nunca tinha chorado, o corpo tremente e
a alma incapaz de aguentar o sofrimento. Foi então que, num segundo de lucidez,
ouvi teu choro. Tu choravas comigo. Tu, meu amigo Carlos, também choravas minhas
dores!
Pareceu-me que,
aniquilado pelo desgosto, o tempo passou por nós velozmente, e que tempos sem
rosto tinham passado desde que Caíra a primeira lágrima. Trazida pela brisa, melifluamente,
qual nota tirada dum violino, no lusco-fusco da noite tu simplesmente disseste
quase em segredo:
- Sei o que é isso. Também perdi o meu dois meses antes do embarque.
No aldeamento, sentados junto às palhotas,
os aldeãos, arrancados de suas terras e centralizados na aldeia para maior
controle dos movimentos dos turras, ocupavam-se do jantar, enquanto a noite ia escurando
cada vez mais. E num sopro de novo tu:
- Como lamento perderes teu pai! Não
sei que dizer! Não sei…
Acreditei em ti, tinha a certeza
absoluta que se tivesses esse poder nas mãos o usavas para curar minha tristeza!
Deste uma palmada suave no meu braço, de seguida levantaste-te e estendeste a
mão para me ajudar a erguer. E, quando eu já estava de pé, olhaste para mim e de
repente, num gesto espontâneo, estreitaste-me nos braços dum jeito que nunca
ninguém me tinha abraçado, naquela linha tão ténue onde se escreve a amizade e
se sente a fraternidade. Começaste a caminhar e eu, sem me dar conta, segui-te,
e teus passos conduziram-nos até à cantina do indiano Shami situada ali a uns duzentos
metros.
Depois o tempo deixou de
existir entre as palavras e as estrelas refulgentes. Na noite e no calor da
cerveja, entre lágrimas e o cheiro do capim, despejei toda minha dor. Falei de
meu pai e das memórias que guardava dele, falei do homem simples e bom que ele
era, evoquei seu nome e seu humor. Soltei a alma e as recordações!
E tu, meu amigo, ouviste, ouviste atentamente
com os olhos indesmentivelmente molhados de quem tinha chorado. Ambos sabíamos bem
na pele a perda dum pai! Falámos de muita coisa menos da guerra que éramos obrigados
a viver todos os dias. Sobre a nossa guerra nem uma palavra como se ela nem
fizesse parte de nossas vidas.
Naquela noite qualquer dum tempo
qualquer, eu aprendi contigo o significado da verdadeira amizade e a sabedoria de
saber ouvir!
Naquela noite, na cantina descaiada do
indiano Shami, tu foste meu irmão!
P. Coura, 26/01/2015
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