Decorria o Ano da Graça do Senhor de 1971, o dia 21 de Abril tinha amanhecido lindo com um sol radioso como a querer despedir-se de nós. Por entre choros e gritos que se ouviam vindos do cais de Conde de Óbidos, lá estavam no velho Niassa apinhados como sardinhas em lata, umas largas centenas de jovens com destino a Moçambique. Entre eles estava eu, lembro-me do pensamento que tive como se fosse hoje; Será que eu algum dia vou voltar a esta terra que eu tanto amo!?. Depois vieram os pensamentos da família, dos amigos e de tudo de bom quer era deixado para trás. Mas de entre tudo que me vinha à memória o que me incomodava mais eram as últimas palavras de minha mãe; Que mal fiz eu a Deus para merecer um castigo assim!... quando da partida do teu irmão Joaquim para a Guiné, chorei lágrimas de sangue, depois foi a partida do teu irmão Hernani para Angola, agora tu meu filho sinto que não tenho mais forças para chorar, apenas sinto meu coração despedaçado de tanta dor e revolta, até parece maldição. Felizmente que a dita maldição terminou comigo. Passados dois anos e alguns meses, fui um daqueles que tive a sorte de regressar, porque muitos por lá tombaram numa guerra que não era nossa. Mas outra luta começava agora tão penosa como a que ficara para trás, a da recuperação dos traumas que por lá se viveram. Eu, no meu silencio enterrei ou penso ter enterrado os meus medos e os meus fantasmas de uma guerra cruel e desumana, o que muitos não conseguiram, esperando por uma ajuda que nunca chegou. Mas no meio de tanto desespero dor e saudade há sempre alguém que tem um momento de inspiração e assim conseguir com que o coração fale mais alto. O Alfredo Maioto, era o exemplo disso, bom colega sempre com uma palavra de conforto e amiga. São dele estas belas palavras que tanto significado têm para quem viveu esse flagelo da Guerra Colonial.
V.Cara D'Anjo
Changara
Conheci África
na tarde cor da manga
e logo seu cheiro mágico e inebriante,
se entranhou para sempre no sangue
qual Picada da Mosca do Sono...
E escrevi Changara em todos os poros
do meu corpo
com letras enormes
da cor da dor
e escritas em páginas
de todos os tamanhos e tons!
Foi um tempo sem idade,
quando os sonhos não tinham fronteiras,
as linhas tinham a força de parágrafos
e as palavras brilhavam nos olhos.
Foi um tempo em que amei a paixão
e me apaxonei pelo amor!
E em Changara li
emoções sem limite,
preenchendo folhas e folhas
dum tempo sem nome...
Mandaram-me calar, em idade tão terna,
todos os sonhos
há muito escritos na alma,
e ordenaram que lesse
poemas cor de poeira,
versos de picadas sem rima,
sons de selva e capim
e medos de armas e morteiros...
Nunca obedeci
mas tornei-me
um menino-soldado infeliz.
Mas um dia, na noite mais noite,
sem estrelas nem luar,
criaram a guerra!.
Então, misteriosamente, vindo não sei de donde,
rebentou em mim um personagem novo.
Tranformei-me.
E o soldado-menino
envelheceu no soldado-homem
sem esperanças nem futuros...
Aprendi a desconfiar de cada árvore calada,
aprendi a olhar cada segundo
como o último a ser respirado,
e que o centimetro seguinte da picada
em nada me pertencia.
E meu fervor gelou
no calor húmido de todos os dias!
Comecei a morrer mais depressa
ao ver sorrisos amigos
sumidos na traição das kalashnikovsou
no troar das ninas!
Então matei sem matar!
E assim, entre ranger de dentes
e gritos de raivas e revoltas,
tremente o peito
e latejante o sangue,
assassinei turras sem nome nem rosto
sangue de fúria racista
correndo-lhes corpo além!
E em brados mais ferozes
que o rio Zambeze,
praguejei palavrões arrancados
não sei de que recanto do meu ser,
cínica e cheia de insónias
a alma!
E, insensível, a todos metralhei.
E, embrutecido,
a todos bazuquei em tiros de indiferenças
e cansaços,
nas mãos a arma mais escura
que o arrepio!
Mas á noite, no mato,
fitando as estrelas,
bem enrolado no poncho frio,
voltava a possuir a parte autêntica
do meu respirar,
e os meus sonhos, intensos e firmes,
como um murmúrio
voltavam a correr em mim,
e eu voltava a acreditar...
E, simples e coloridas,
deslizavam lágrimas capim
adentro...
E eu pensava . E sentia.
E pensava, sentindo,
os rostos magros assentes
em olhos famintos.
E sentia, pensando,
corpos de roupas esfarrapadas
e tresandando a catinga,
dentes podres do nada,
machado ao ombro, passo descalço,
as mãos cheias de calos
e cheirando a machamba...
Meu corpo desenrugava-se
e minha alma emudecia...
E numa manhã de sol,
quando, meiga, amadurecia a papaia,
e as águas do Luenha corriam mansas,
descobri que matara esperanças
da mesma cor
que minhas próprias ilusões!...
A.Maio