2016/03/03

DORES SEM NOME



Mais um excelente “Escrito” do meu Colega e Amigo A. Maioto.
Este trabalho é um exemplo daquilo que aconteceu a milhares de colegas nossos, durante o período da guerra colonial.

DORES SEM NOME
 
Em mim a noite mais escura de toda minha vida. Todo meu ser foi arrastado para uma escuridão de sombras sinistras como se alguém, maquiavelicamente pérfido, tivesse queimado todo meu corpo de luto. Atónito, perplexo, no meu triste enlouquecer as dores nem me permitiam sequer chorar, que seria um bálsamo, e os pensamentos, esses, ziguezagueavam no fundo do mundo que afinal era tão só a enormidade desfigurada da minha alma!

Maquinalmente deixei escorregar o corpo, pesado como uma Berliet, para o chão barrento e encostei-me ao embondeiro enorme, de ramos fortes e tronco corpulento, alargando a vista pelo acaso onde o sol se desvanecia a cada segundo…

                      Então tu chegaste. Silencioso, sem proferir uma letra sequer ao ver-me assim prostrado, e sentaste-te a meu lado, ficando depois mudo a observar o por do sol por cima das copas das árvores. Para nós, naquela tarde qualquer dum dia sem nome, naqueles instantes o tempo não existia, e se existisse nós éramos os senhores absolutos para podermos destrui-lo ou compô-lo a nosso bel-prazer. A dor dilacerava-me as entranhas…

                         Sem te olhar estendi-te o aerograma que segurava nas mãos, e pelo canto do olho acompanhei sem querer, desinteressadamente, o teu gesto em abri-lo com calma já prevendo o pior e depois a leitura. Leste-o duas vezes. Depois, com a mesma calma com que o abriste, fechaste-o com um carinho comovente como se duma relíquia se tratasse, pousando-o depois na mão que eu estendi.

                        Nada disseste. Nem uma letra sequer, nem um som! O sol já se tinha ido embora deixando em sua substituição os primeiros tons da noite. Pareceu-me, na solidão do tempo em que mergulhei, que minhas dores nunca mais iriam sarar, e a cada segundo que passava elas aumentavam de tamanho. E uma lágrima, e várias, e muitas, sustidas até aí a tanto custo, finalmente irromperam de meus olhos molhando a camisa do camuflado que envergava. E chorei como nunca tinha chorado, o corpo tremente e a alma incapaz de aguentar o sofrimento. Foi então que, num segundo de lucidez, ouvi teu choro. Tu choravas comigo. Tu, meu amigo Carlos, também choravas minhas dores!

                      Pareceu-me que, aniquilado pelo desgosto, o tempo passou por nós velozmente, e que tempos sem rosto tinham passado desde que Caíra a primeira lágrima. Trazida pela brisa, melifluamente, qual nota tirada dum violino, no lusco-fusco da noite tu simplesmente disseste quase em segredo:

                - Sei o que é isso. Também perdi o meu dois meses antes do embarque.

            No aldeamento, sentados junto às palhotas, os aldeãos, arrancados de suas terras e centralizados na aldeia para maior controle dos movimentos dos turras, ocupavam-se do jantar, enquanto a noite ia escurando cada vez mais. E num sopro de novo tu: 

             - Como lamento perderes teu pai! Não sei que dizer! Não sei…

           Acreditei em ti, tinha a certeza absoluta que se tivesses esse poder nas mãos o usavas para curar minha tristeza! Deste uma palmada suave no meu braço, de seguida levantaste-te e estendeste a mão para me ajudar a erguer. E, quando eu já estava de pé, olhaste para mim e de repente, num gesto espontâneo, estreitaste-me nos braços dum jeito que nunca ninguém me tinha abraçado, naquela linha tão ténue onde se escreve a amizade e se sente a fraternidade. Começaste a caminhar e eu, sem me dar conta, segui-te, e teus passos conduziram-nos até à cantina do indiano Shami situada ali a uns duzentos metros.

                Depois o tempo deixou de existir entre as palavras e as estrelas refulgentes. Na noite e no calor da cerveja, entre lágrimas e o cheiro do capim, despejei toda minha dor. Falei de meu pai e das memórias que guardava dele, falei do homem simples e bom que ele era, evoquei seu nome e seu humor. Soltei a alma e as recordações!

 E tu, meu amigo, ouviste, ouviste atentamente com os olhos indesmentivelmente molhados de quem tinha chorado. Ambos sabíamos bem na pele a perda dum pai! Falámos de muita coisa menos da guerra que éramos obrigados a viver todos os dias. Sobre a nossa guerra nem uma palavra como se ela nem fizesse parte de nossas vidas.

          Naquela noite qualquer dum tempo qualquer, eu aprendi contigo o significado da verdadeira amizade e a sabedoria de saber ouvir!

         Naquela noite, na cantina descaiada do indiano Shami, tu foste meu irmão!
 
Alfredo Maioto
P. Coura, 26/01/2015