2012/12/22

Memórias da Guerra Colonial / Por Alfredo Maioto


O TURRA

Sentia as mãos transpiradas de tanto nervosismo. E de repente, o corpo desconfortável e a mente cheia de impaciências, saiu-me uma interrogação macabra: afinal que fazia eu ali, noutros tempos um café de risos e encontros felizes, mas hoje de aspecto sinistro e carcomido pelos anos com as teias de aranha adornando as janelas????
Há tempos atrás, encontrando-nos no Skype, confidenciei ao meu amigo Tatia que gostaria muito de conhecer algum turra que tivesse operado na minha zona, no distrito de Tete, nos tempos em que la estive a cumprir a minha comissão. Julguei, contudo, que minha confissão caísse no esquecimento e meu desejo mais não fosse que simples anseio … Engano meu! No mês passado, porém, inesperadamente, o Tatia mandou uma mensagem a dizer que podia ir a Inhambane conhecer um turra que tinha operado na minha zona entre 1970 – 1973. Ao ler essa notícia estremeci invadido por uma mistura de sentimentos dispersos e contraditórios. Hesitei. E agora, naquele sábado de Agosto, ali estava eu no café Alvorada aguardando a chegada desse alguém estranho e outrora meu inimigo.
Não decorreu muito tempo quando um homem de estatura media, calça de ganga e camisa azul aos quadrados, barba de vários dias crescida ao acaso, aproximou-se de nós repartindo o olhar entre o Tatia e a minha pessoa, e plantando-se à nossa frente em silêncio, sorridente. Tatia levantou-se e estendeu-lhe a mão, saudaram-se com efusão e vastos sorrisos.
- Antonio, apresento-te o meu amigo Cassamo – disse de repente o Tatia virado para mim.
Sua voz, nervoso como eu estava, pareceu-me, saiu como uma rajada curta de G3… E indiferente ao nosso mutismo, como se desse a noticia mais banal do mundo, completou:
- O Cassamo esteve a operar na zona de Tete durante 5 anos, 3 como comandante na zona de Changara.
Estremeci. O coração quase parou. As pernas vacilaram. Sem me dar conta metralhei meu olhar frio no desconhecido postado à minha frente, barriga um pouco abastada, a camisa despreocupadamente saída das calças, rosto cansado próprio de quem já viveu emoções fortes. Fitamo-nos por segundos que me soaram a séculos  todo meu ser dominado por emoções vindas do fundo mais longínquo do meu ser e albergadas durante quase quarenta anos…. Mas vinda doutra galáxia de novo a voz do Tatia, quase em sussurro:
- António, não apertas a mão ao Cassamo??? – a pergunta continha ironia  e uma leve censura.
Como que saí da hipnose, e só então me apercebi que o recém-chegado me estendia a mão. Envergonhado quase senti o suor a escorrer-me das mãos e a cair em cima da cadeira velha. E por milésimos de segundo hesitei em responder positivamente à pergunta do meu amigo Tatia, mas foi o estranho que simplificou as coisas, dizendo:
- Prazer em conhece-lo, António. O Tatia falou-me muito de si. Seja bem-vindo a Inhambane.
A voz era calma e o olhar amistoso. Admiti, sem o pretender, que ele era uma pessoa simpática, desse tipo de pessoas de quem se gosta facilmente. Então nossas mãos estreitaram-se. O seu aperto foi forte, característica de quem está acostumado a não perder tempo a tomar decisões, ao mesmo tempo que um sorriso simples escorria em seus lábios. As mãos eram grossas e calejadas. O Tatia, perspicaz, e entendendo bem a complexidade do momento, chamou o empregado e mandou vir uma Laurentina e três copos.
La fora o calor ia tomando conta da cidade. Mas eu ainda não tinha recuperado a normalidade. Faltava-me o ar. Devia ser do Alvorada onde vivi tempos num tempo inapagável. Talvez a saudade, talvez a memória traquina a martirizar-me a memória arrastando-me numa viagem avassaladora até ao passado. Talvez a culpa fosse do Alvorada, ia-me ingenuamente enganando…
- Quando o Tatia me propôs esta reunião eu concordei de imediato. Já la vão quarenta anos… Esteve em Changara, não foi?
Fim do primeiro capitulo


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