2016/04/07

Mulheres-Silêmcio


MULHERES-SILÊNCIO

Meu nome é Joana Santos, um nome tão vulgar entre tantos outros que vivem ou viveram a mesma experiência que eu. Não há histórias únicas, há histórias que às vezes parecem prolongamento da nossa própria vida tão grande é a coincidência de palavras e de dores. Vou contar as minhas.

               Por onde começar? As palavras há muitos anos que se resignaram e a coragem gastou-se na paciência com que fui preenchendo meu destino.

               Meu marido chama-se João Serpa, tem 68 anos de idade e esteve quase dois anos na Guiné a cumprir a sua comissão como soldado integrado numa Companhia de Caçadores. Ele é, por conseguinte, um das centenas de milhares de militares enviados para o Ultramar e rotulados de ex-combatentes, um rótulo que define uma geração inteira. Ex-combatente é um símbolo de abandono, de esquecimento, exatamente aquilo que a Pátria fez e faz a todos quantos foram empurrados para África para defender as nossas ex-colónias.

                     Meu marido chegou da Guiné são e salvo, graças a Deus, mas nosso drama, contudo, começou certa manhã quando, ao acordar, se queixou de fortes dores de cabeça. Levantou-se com esforço, vacilante, e dirigimo-nos de seguida ao hospital de Viseu. Pensava eu, naquele instante, que seria problema de visão, e daí ter marcado consulta para oftalmologia. No final da consulta o médico mandou sair meu marido e pediu para eu ficar para me dizer em surdina: o seu marido precisa de psiquiatra! Segui a instrução e fomos ao psiquiatra – e desde esse dia nunca mais paramos! O médico disse que aquilo era esgotamento. Pior que isso: stress de guerra. Naquela altura, porém, pouco ou nada se sabia o que isso representava. Ninguém me dizia, ou não queria dizer, o que realmente era isso. Tivemos de ir vivendo com o problema como podíamos, tendo como lenitivo possível os comprimidos receitados que nós seguíamos à risca.

                      A partir desse dia, então com 32 anos, casados há quatro anos apenas, meu marido ingeria vários comprimidos por dia na tentativa de debelar o mal: uns eram para o deixar calmo, outros para o deixarem dormir. De homem calmo e jovial que era, e com o passar do tempo e o avanço da doença, começou a ser impaciente e as vezes agressivo portando-se duma forma nunca imaginada. Era um homem muito diferente do que eu conhecera e que me atraíra ao ponto de casar com ele. Como é natural foi piorando ano após ano. Dormia muito mal. Havia noites que se levantava aos berros imitando o som das metralhadoras como se estivesse debaixo de fogo. Resmungava por tudo e por nada, intolerante para mim e até para o Rui Miguel, nosso único filho, tornando a vida difícil lá em casa. Não podíamos bater portas, o barulho incomodava-o tremendamente, e não se podia ouvir a música num volume elevado – porque tudo isto o irritava. Sentava-se na cadeira, meio apático e olhar mortiço, à espera que o tempo rolasse, como se o instante de agora fosse repetitivamente o mesmo de amanhã! Como tinha mudado! Aquele não era o meu marido! Quantas lágrimas não chorei no meu silêncio!

               Fui obrigada a deixar meu emprego de educadora infantil para vir para casa ocupar-me totalmente dele. No seu vigésimo aniversário o Rui Miguel chegou a casa por volta das duas da manhã. O pai dormia. Apesar de todos os cuidados, sabendo sobejamente que não podia fazer barulho, de repente a porta bateu e o estrondo ecoou pela casa. Foi o suficiente. Sobressaltado, de repente, e em pleno silêncio da noite, o meu João levantou-se a gritar “os turras vêm aí” vezes sem conta. Quando chegámos à beira dele tinha a cabeça escondida debaixo dos Lençóis e o corpo todo enrolado como que a proteger-se do ataque. Meu filho e eu tentámos acalmá-lo, mas em vão. Então o Rui Miguel fez-me sinal com a cabeça para eu sair e ainda tive tempo para o ver deitar-se ao lado do pai em silêncio e abraçando-o forte num gesto protetor. E ali ficou sem tempo na noite, simplesmente acalmando o pai através do seu abraço carinhoso! Cá de fora ouvi seu soluçar a misturar-se com os gritos do pai cada vez menores até se calarem de vez… O amor sobrepusera-se ao drama mental.  

                    Não saímos de casa porque o João não tolera o ruido dos carros. Deixamos de almoçar fora de casa. Ao mínimo som que se aproxime de rajada, ou mesmo quando, sem querer, algum filme que passe na televisão e que envolva tiros, ele deita-se imediatamente no chão e diz sempre a mesma coisa: protejam-se! Os turras vêm aí!

                 Há quase de 30 anos que vivo isto. Se precisa de ir ao médico, incapaz de se deslocar sozinho, tenho de ser eu a acompanhá-lo; para tomar os comprimidos sou eu quem os dá e diz quais. Ele não consegue viver sem mim qual criança a quem temos de dizer faz isto ou faz aquilo. E eu, incapaz de deixá-lo, fiel à promessa de honrá-lo até ao fim como jurado no dia do casamento, tornei-me o seu anjo da guarda para tudo. E vou honrá-lo até ao fim!

                   Todavia, às vezes assume por momentos quase a normalidade e tem gestos surpreendentes. Na semana passada, por exemplo, colocou debaixo do travesseiro um pequeno bilhete rabiscado com letra irregular em que docemente escrevinhou: tu és o anjo da minha vida! Meigo como noutros tempos… Recuperação momentânea do homem bom que ele era e que a guerra tinha destruído!

                    Outras vezes, simplesmente, aperta a minha mão e fica a olhar para mim com aqueles olhos grandes de menino mimado sem proferir uma só palavra. Eu entendo o que ele quer dizer, e aperto a sua sorrio e aconchego-o a mim. E mais que uma vez vi-lhe os olhos húmidos… Nesses instantes de semi-consciência dou-me conta que ele tem noção do seu estado doentio!               

                 Dentro de mim, contudo, sempre uma dor disforme e infinda. Meu destino é este, então só me resta levar tudo até ao fim com conformismo e coragem. E muitas lágrimas à mistura…

Alfredo Maioto
P. Coura, 01/03/2016

PS :  DEDICADO A TODAS AS MULHERES-SILÊNCIO DESTE PAÍS!
                          
             

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