MULHERES-SILÊNCIO
Meu nome é Joana
Santos, um nome tão vulgar entre tantos outros que vivem ou viveram a mesma
experiência que eu. Não há histórias únicas, há histórias que às vezes parecem
prolongamento da nossa própria vida tão grande é a coincidência de palavras e
de dores. Vou contar as minhas.
Por onde começar? As palavras há
muitos anos que se resignaram e a coragem gastou-se na paciência com que fui
preenchendo meu destino.
Meu marido chama-se João Serpa,
tem 68 anos de idade e esteve quase dois anos na Guiné a cumprir a sua comissão
como soldado integrado numa Companhia de Caçadores. Ele é, por conseguinte, um das
centenas de milhares de militares enviados para o Ultramar e rotulados de
ex-combatentes, um rótulo que define uma geração inteira. Ex-combatente é um
símbolo de abandono, de esquecimento, exatamente aquilo que a Pátria fez e faz a
todos quantos foram empurrados para África para defender as nossas ex-colónias.
Meu marido chegou da Guiné
são e salvo, graças a Deus, mas nosso drama, contudo, começou certa manhã
quando, ao acordar, se queixou de fortes dores de cabeça. Levantou-se com esforço,
vacilante, e dirigimo-nos de seguida ao hospital de Viseu. Pensava eu, naquele
instante, que seria problema de visão, e daí ter marcado consulta para oftalmologia.
No final da consulta o médico mandou sair meu marido e pediu para eu ficar para
me dizer em surdina: o seu marido precisa de psiquiatra! Segui a instrução e
fomos ao psiquiatra – e desde esse dia nunca mais paramos! O médico disse que
aquilo era esgotamento. Pior que isso: stress de guerra. Naquela altura, porém,
pouco ou nada se sabia o que isso representava. Ninguém me dizia, ou não queria
dizer, o que realmente era isso. Tivemos de ir vivendo com o problema como
podíamos, tendo como lenitivo possível os comprimidos receitados que nós
seguíamos à risca.
A partir desse dia, então
com 32 anos, casados há quatro anos apenas, meu marido ingeria vários
comprimidos por dia na tentativa de debelar o mal: uns eram para o deixar
calmo, outros para o deixarem dormir. De homem calmo e jovial que era, e com o
passar do tempo e o avanço da doença, começou a ser impaciente e as vezes
agressivo portando-se duma forma nunca imaginada. Era um homem muito diferente
do que eu conhecera e que me atraíra ao ponto de casar com ele. Como é natural
foi piorando ano após ano. Dormia muito mal. Havia noites que se levantava aos
berros imitando o som das metralhadoras como se estivesse debaixo de fogo. Resmungava
por tudo e por nada, intolerante para mim e até para o Rui Miguel, nosso único
filho, tornando a vida difícil lá em casa. Não podíamos bater portas, o barulho
incomodava-o tremendamente, e não se podia ouvir a música num volume elevado –
porque tudo isto o irritava. Sentava-se na cadeira, meio apático e olhar
mortiço, à espera que o tempo rolasse, como se o instante de agora fosse
repetitivamente o mesmo de amanhã! Como tinha mudado! Aquele não era o meu
marido! Quantas lágrimas não chorei no meu silêncio!
Fui obrigada a deixar meu
emprego de educadora infantil para vir para casa ocupar-me totalmente dele. No
seu vigésimo aniversário o Rui Miguel chegou a casa por volta das duas da manhã.
O pai dormia. Apesar de todos os cuidados, sabendo sobejamente que não podia
fazer barulho, de repente a porta bateu e o estrondo ecoou pela casa. Foi o
suficiente. Sobressaltado, de repente, e em pleno silêncio da noite, o meu João
levantou-se a gritar “os turras vêm aí” vezes sem conta. Quando chegámos à
beira dele tinha a cabeça escondida debaixo dos Lençóis e o corpo todo enrolado
como que a proteger-se do ataque. Meu filho e eu tentámos acalmá-lo, mas em
vão. Então o Rui Miguel fez-me sinal com a cabeça para eu sair e ainda tive
tempo para o ver deitar-se ao lado do pai em silêncio e abraçando-o forte num
gesto protetor. E ali ficou sem tempo na noite, simplesmente acalmando o pai
através do seu abraço carinhoso! Cá de fora ouvi seu soluçar a misturar-se com
os gritos do pai cada vez menores até se calarem de vez… O amor sobrepusera-se
ao drama mental.
Não saímos de casa porque o
João não tolera o ruido dos carros. Deixamos de almoçar fora de casa. Ao mínimo
som que se aproxime de rajada, ou mesmo quando, sem querer, algum filme que
passe na televisão e que envolva tiros, ele deita-se imediatamente no chão e
diz sempre a mesma coisa: protejam-se! Os turras vêm aí!
Há quase de 30 anos que vivo
isto. Se precisa de ir ao médico, incapaz de se deslocar sozinho, tenho de ser
eu a acompanhá-lo; para tomar os comprimidos sou eu quem os dá e diz quais. Ele
não consegue viver sem mim qual criança a quem temos de dizer faz isto ou faz
aquilo. E eu, incapaz de deixá-lo, fiel à promessa de honrá-lo até ao fim como
jurado no dia do casamento, tornei-me o seu anjo da guarda para tudo. E vou
honrá-lo até ao fim!
Todavia, às vezes assume por
momentos quase a normalidade e tem gestos surpreendentes. Na semana passada,
por exemplo, colocou debaixo do travesseiro um pequeno bilhete rabiscado com
letra irregular em que docemente escrevinhou: tu és o anjo da minha vida! Meigo
como noutros tempos… Recuperação momentânea do homem bom que ele era e que a
guerra tinha destruído!
Outras vezes, simplesmente,
aperta a minha mão e fica a olhar para mim com aqueles olhos grandes de menino
mimado sem proferir uma só palavra. Eu entendo o que ele quer dizer, e aperto a
sua sorrio e aconchego-o a mim. E mais que uma vez vi-lhe os olhos húmidos…
Nesses instantes de semi-consciência dou-me conta que ele tem noção do seu
estado doentio!
Dentro de mim, contudo, sempre
uma dor disforme e infinda. Meu destino é este, então só me resta levar tudo até
ao fim com conformismo e coragem. E muitas lágrimas à mistura…
Alfredo Maioto
P. Coura, 01/03/2016
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