2009/04/21

Recortes dum Diário

Changara, 21 Abril 1972:

Hoje é sexta-feira, mas bem podia ser terça, ou ate domingo, que nenhuma diferença faz. Aqui todos os dias são cansativamente iguais. Aqui, nesta Changara perdida no cruzamento entre Tete, Vila Pery e a fronteira da Rodésia, onde vamos todos os dias, o tempo parece ter estagnado, como se o diabo aqui tivesse sentado arraiais. ... Não anda, parece ter parado no dia em que chegámos. Aqui o tempo não existe!
Mas hoje é dia de coluna até à Rodésia, a fim de escoltarmos as viaturas civis e os camiões TIR que seguem para o Malawi carregados de mercadoria vinda da África do Sul.

- Estás porreiro, Pensador? – Pergunta o Fonseca. Sempre desafiador, o meu bom amigo Fonseca. Sorrio ao vê-lo de lenço preto ao pescoço, o que sempre acontece todas as vezes que sai para o mato. Gosto de vê-lo assim, aquele lenço preto ao pescoço confere-lhe um ar de pequeno guerrilheiro.

Respondo-lhe -lhe que sim, mas a verdade é que não estou. Sinto-me doente. Mas da alma, porque o corpo, apesar das dores, vai aguentando.

- Vamos embora, temos muito para andar! – É o Xico Trovoada no seu vozeirão, sempre a protestar mas sempre solicito a todas as eventualidades.

Tem razão, hoje vai ser um dia deveras cansativo e longo. Saímos tão cedo e só regressamos ao quartel ao fim do dia, já com a noite caída. Embora ainda tão cedo o sol já aquece. Sem dúvida vai estar um dia muito quente, muito perto dos 40 graus como tem sucedido nos últimos dias. Este calor húmido mata o corpo e esgota-nos a paciência.

- Não se preocupe, hoje os turras não atacam. Como atacaram ontem hoje descansam...

É o Tocha, sempre bem-humorado, sorrindo com aquele rosto onde mal chegou o sol tórrido de Tete. Lá da frente, da Berliet, que abre a coluna, fazem-me sinal de que está tudo em ordem. Também dos dois “Pinchas” 411, que seguem atrás de mim, dizem o mesmo. Vamos, então! E que Deus nos acompanhe!

Levanto a mão para a Berliet e a coluna põe-se em marcha. Enfio o quico no bolso para que o ar fresco da manha possa bater-me no rosto. Preciso de encher a alma de ar puro, preciso de sentir o cheiro da selva e do capim entrar no meu ser, revigorando o inconformismo e a solidão. Preciso de fechar os olhos e recuperar a energia dos meus sonhos deixados lá no “Puto” ...

Há um ano que cheguei cá. Estou, pois, a meio da comissão. Falta tanto tempo para o final! Nem quero pensar, ou então endoideço de vez. Nesta guerra, como agora em que sigo a caminho da Rodésia, sentado literalmente em cima de sacos de areia, postos ali como protecção em caso de rebentamento de alguma mina, aprendi que o segundo seguinte não me pertence. Aprendi que apenas sou dono deste preciso segundo, porque o segundo seguinte poderá já não ser meu... Uma mina ou um tiro vindo do capim ou detrás duma rocha muda meu destino num segundo...

Dói-me a alma, dói-me o corpo, dói-me tudo! Dói-me ate o simples cansaço que se alojou em mim qual paludismo maquiavélico. Tenho saudades de casa, da minha família, dos meus amigos. Estou farto desta guerra e deste Moçambique tão distante de minha casa! Por isso a alma sofre. E interroga-se. Valerá a pena todo este sacrifício? Na minha cabeça, qual tic-tac dum relógio prestes a avariar, uma pergunta que não me larga e insiste, caprichosa, em me atormentar. A todos quantos, como eu, cumprem o dever de virem para cá, como nos chamará a posteridade? Heróis ou cobardes?

Alfredo Maioto

8 comentários:

Anónimo disse...

Ao ler tão bom texto, cheio de realismo e sensibilidade, senti-me transportado para a Guiné, também nos anos 70.
J.Baptista

Anónimo disse...

Obrigado Senhora Susana, Cara de Anjo e Maioto, por não deixarem cair no esquecimento, aquilo que foi um flagelo da minha geração; A Guerra Colonial.
Foram muitos os do meu tempo que passaram por esse martírio e, hoje vemos com muito agrado quando escrevem sobre nós de uma forma louvável e não achincalhando-nos como muito têm feitos.
Basta ver certos programas de televisão onde os “outros” praticamente passam por bonzinhos e nós por maus da fita.
Enfim é o país que temos, que esquece aqueles que o defenderam, com Sangue Suor e Lágrimas e até a Morte.
Bem-haja meus amigos pela lembrança.
Joaquim Morais
(Veterano de Angola)

Anónimo disse...

Também eu meu caro amigo passei por isso tudo.
Embora fosse uma guerra que eu achava estúpida e inútil, não fugi cobardemente. Lamento sim o desprezo e o abandono a que fomos vetados. Não fomos nem heróis nem cobardes, saímos simplesmente sem glória nem honra, apenas esquecidos, por aqueles que foram os causadores de milhares de mortos e estropiados.
Muito e muito mais haveria para dizer, mas para quê desenterrar mágoas e abrir feridas?
Um abraço de gratidão ao senhor Maioto, pela forma tão real como se sabe exprimir.
M.S.L.

Anónimo disse...

Flagelo!? diria mesmo que foi o purgatório para nós em benefício de alguns. Hoje passados tantos anos ainda anda pulando de poleiro em poleiro como pavões inchados sem que a consciência lhe pese.
Apetece-me dizer bem alto “ Que terra é esta que não merece os filhos que tem”
Veterano da Guiné

Anónimo disse...

Está enganado meu caro Veterano...
Não é esta terra que não nos merece,os nossos politicos é que não nos merecem. Desde a inutil Guerra, passando pela vergonha que foi a descolonização, até ao nosso total abandono, todos eles enfiados num cordel e colocados ao sol ainda era pouco.
Outro veterano cheia de mágoa

Anónimo disse...

O que é que será necessario dizer mais para Abraçar este nosso CAMARADA de sofrimento e sacrificio?

UM GRANDE ABRAÇO A TODOS OS VETERANOS

Pedro Domingos
Veterano em Angola

Anónimo disse...

Bravo camarada de armas parabéns, gostei bastantes do que escreveste.
um abraço
João Pinheiro

Anónimo disse...

Tenho pena que a estas mensagens do nosso camarada Maioto, não consegui chegar a todos nós, porque seria uma forma interessante de demonstrar a muita boa gente, que embora abandonados, continuamos unidos e não nos esquecemos.
José Alves
Mecanico-Auto (Guiné)