2011/04/21

A Guerra Colonial e os Colarenses


MEMÓRIAS QUE NUNCA MORREM

Eram três. Apearam-se do jeep que os trouxe de Tete cientes do medo que incutiam onde quer que chegassem. Pertenciam à DGS, a ex- Pide, simbolicamente extinta de nome mas cujos métodos de persuasão continuavam a ser os mesmo. Um era alto, uma grande cicatriz no rosto, espalhando arrogância no andar e no rosto duro e quase inexpressivo, a quem eu logo chamei de múmia. O segundo era baixo, baixo mas atarracado, mãos largas, olhar vivo. O terceiro era magro, e tinha nas mãos, qual brinquedo muito estimado, uma régua idêntica àquela que todos nós conhecíamos na escola…

Dois dias antes dois pelotões nossos, a caminho da Rodésia, sofreram uma emboscada vinda do aldeamento situado a uns 30 quilómetros do quartel, e agora eles vinham para interrogar os aldeões donde partiu a mesma e daí, se possível, descobrir pistas dos turras. Todos sabíamos que estes, tal como nós, andavam por lá em acção psicológica. Agora tínhamos a certeza: a guerra tinha começado precisamente dois dias atrás.

Nessa manhã de Junho de 1971 estava um dia com muito sol. Meiga e suave corria uma brisa. Quando chegámos à povoação era quase meio-dia, e quase todos os habitantes da povoação estavam sentados à entrada de suas cabanas sem imaginarem o inferno que os esperava. O agente da DGS, a tal múmia, reuniu-os a todos perguntou em dialecto quem tinha ajudado os turras a atacar a tropa. Ninguém se mexeu, ninguém proferiu uma sílaba que fosse. O baixote, olhar vivo, falou e Insistiu, precisava de saber ou todos pagariam por isso. E, como resposta, o mesmo silêncio, aquele silêncio que fere a mente só em se tentar adivinhar… E o inferno começou! Um a um, e em separado, todos os rapazes e homens da aldeia foram interrogados. E nada confessaram. A resposta era sempre a mesma: nada sabiam! Até que chegou a vez daquele homem de cabelos esbranquiçados, rosto fino e corpo cansado. Fizeram-lhe a mesma pergunta de sempre:

- Ajudaste os turras? E a resposta saiu fraca: não patrão! O coitado homem estava no meio dos três agentes. O da cicatriz deu-lhe um soco no estômago que o fez rodopiar. O segundo um pontapé nos joelhos, e o terceiro, com a sua régua bateu-lhe nos cotovelos. E o interrogatório continuou por longos e eternos minutos… Em mim uma revolta tremenda pela cena que era obrigado a presenciar. Ao fim de algum tempo, e devido a tanta pancada, o pobre negro já não podia fechar as mãos de tão inchadas que estavam. Pedia água, e em vez de lhe dar de beber davam-lhe cada vez mais porrada. Por fim, já cansados e sem resultados, os três homens da DGS pararam, deixando estendido no chão o desgraçado do aldeão.

Então nossos olhares cruzaram-se. Seus lábios tentavam balbuciar “mazzi”, precisava de beber, mas as forças não o permitiram. Então de repente, sem me dar conta, num gesto instintivo e súbito, aproximei-me dele, soergui-lhe um pouco a cabeça e dei-lhe de beber água do meu cantil. Ele olhou para mim, surpreendido e agradecido, um sorriso leve e mortiço escrito em seus lábios. E, sempre a olhar para mim, um brilho que não mais poderei esquecer em seus olhos, ele morreu. Morreu em meus braços!

Quarenta anos depois, toda a vez que recordo esta cena tão funda da minha guerra em Moçambique, o coração ainda estremece e os olhos ficam embaciados…

(21 de Abril de 1971, faz hoje 40 anos que embarcamos no Miassa, para aquele que seria o maior flagelo das nossas vidas).

Memórias de Vitalino Cara D'Anjo/ Escritas por Alfredo Maioto 

9 comentários:

Anónimo disse...

Eras muito bonito......

Anónimo disse...

Caro amigo Vitalino mesmo na guerra você já era um homem Bom.
João

Anónimo disse...

Foi pena não estar ninguem do Noticias de colares en Sintra na olga de cadaval para ver o pesidente da freguesia de colares o SR rui a dançar porque o coro da associação de idosos pensionistas e reformados do MUCIFAL pouca importancia tem, mas atenção o publico levantou-se (casa cheia) e aplaudi-nos gostei gostei gostei

Anónimo disse...

Senhor Vitalino, realmente deve ter sido uma experiencia muito dura, essa vivida no ultramar.Felizmente acabou precisamente quando eu tinha idade para ir para a tropa.Senão fosse o 25 de abril possívelmente o meu destino seria o mesmo.
Um Abraço
José fernando

Anónimo disse...

Não sei bem o que se passou no dito ultramar, tambem não chequei a ir à tropa mas tenho muito respeito pelos que por lá andaram.
Só peço que nunca mais haja nada parecido com esse flagelo como diz o senhor Vitalino.

Anónimo disse...

Se uma coisa dessas se passasse comigo, possivelmente nunca mais teria paz, daí entender o que se passa no espírito do senhor Vitalino.
Cenas dessas são para toda a vida e felizes são aqueles que as conseguem ultrapassar, embora eu duvide que isso aconteça alguma vez.

Joana

Anónimo disse...

Vitalino, enquanto embarcavas para o Ultramar, eu iria uns meses mais tarde, estava eu a casar, precisamente hoje estou a festejar 40 anos de casamento, felizmente com saude.

Embora não tenha a tua experiencia que aqui foi relatada, não consegui seguir e acompanhar a infancia da minha filha, assim como tantos outros nossos CAMARADAS.

grande abraço

Pedro Domingos

Anónimo disse...

Portanto, num cenário de guerra, a DGS era a única que torturava e castigava para saber informações que poupariam vidas aos soldados portugueses. Os turras não, eram umas bondades em pessoa, nunca assassinaram mulheres nem crianças. Nesse tempo, nem o KGB na Rússia matava gente nem a CIA prendia americanos comunistas. Eram todos bons rapazes. Mas, afinal, os "malvados" da DGS, com a sua brutalidade, estavam a evitar que outros, como o Sr. Vitalino, fossem mortos. Mortos a defender um território onde a maioria da população queria continuar portuguesa e onde ainda hoje o nome de Portugal desperta sentimentos de nostalgia e carinho.

Anónimo disse...

O caro Anónimo Ou não sabe do que fala ou então está muito fora da realidade, ainda haverá outra hipótese...terá pertencido à DGS???
Muitos Srs. Vitalinos por lá ficaram graças ao ódio rancor originados pela tortura que a DGS infligia às populações inocentes, que os obrigava a voltarem-se para o inimigo.
Por isso quando voltar a falar, procure primeiro falar com alguém que sabe das coisas.
Claro que nem todos estão inocentes do que se passou, mas a PIDE/DGS meu amigo, para além de ser um carrasco para as populações africanas foi em parte também para as tropas portuguesas.
Carlos Correia (Veterano da Guiné)