UM NATAL FELIZ
Vi-o e espequei. Ele tinha o
rosto completamente espetado contra o vidro devorando todos os bolos expostos
na montra, engolindo em seco um a um. As mãos, essas, estavam refugiadas nos bolsos e o corpo todo
encolhido em luta contra o frio que imperava. Aproximei-me e sorri-lhe.
Primeiro olhou para mim com receio, mas depois, ao ver meu sorriso franco,
desarmou um pouco. Aproveitei a brecha.
- Tens fome? – perguntei.
Que pergunta tão estúpida a
minha! A fome, juntamente com o frio,
estava bem estampada em seu rosto! Mas a verdade é que eu apenas
pretendia meter conversa, e essa pergunta, pecando por imprópria, foi aquela
que primeiro despontou na minha cabeça. Ele acenou que sim, receoso ainda
quanto às minhas pretensões. Murmurei baixinho um “ anda comigo “ depois
estendi-lhe a mão que ele aceitou timidamente e entrámos na confeitaria. Lá
dentro uma agitação intensa e um calor sufocante. Os empregados corriam em
mangas de camisa dum lado para o outro numa azáfama desritmada, e as pessoas
movimentavam-se apressadas na tentativa de comprar o bolo rei para a ceia de
Natal. Colocado por cima da máquina de café, no meio da sala, o relógio de
parede assinalava as cinco horas da tarde.
Casualmente um casal
levantou-se e logo aproveitei para me apossar da mesa, e sentámo-nos.
O meu amiguinho,
contudo, sentia-se deslocado do
ambiente, sem dúvida nada acostumado a frequentar ambientes como aquele.
Envergava um blusão azul com gola em vermelho muito gasto já, mas limpo, embora
ligeiramente grande para a sua idade, herança, talvez, de algum irmão mais
velho, pensei. Descalçando as luvas e tirando o cachecol, ao mesmo tempo
desejoso de conhecer sua história, abri-me num sorriso largo e disse-lhe:
- Hoje é dia de Natal, podes
comer os bolos que quiseres.
Os olhos arregalaram-se,
incrédulos, e instintivamente o corpo atirou-se para a frente cheio de
ansiedades. Todos os que quisesse? E os que quisesse? Respondi que sim, e de
seguida chamei o empregado. Primeiro saciar-lhe a fome, e só depois é que seria
tempo para saber quem ele era. Reparei que seus modos eram recatados, notava-se
que tinha uma educação bastante esmerada apesar das roupas pobres, e o olhar era doce, meigo, inspirador de
confiança. Sobrepondo-se ao ruído existente no espaço, aproximou o rosto do meu
e esboçando um sorriso humilde, baixinho:
- Obrigado.
Um canal da televisão
apresentava um programa com músicas natalícias, enquanto um outro passava um
filme adequado à época. Curiosamente,
contudo, reparei que o menino tinha pedido ao empregado apenas uma fatia de
bolo rei. E quando ela chegou, em vez de comer sôfregamente como eu esperava,
primeiro pegou nela com o mesmo carinho com que bem poderia ser uma prenda,
mirou-a dum ponta à outra, cheirou-a e
só depois é que deu uma pequena dentada. Perguntei, intrigado, se não estava
boa, mas ele logo me tranquilizou:
- Não, senhor. Nós é que lá
lá em casa, como não temos dinheiro, não comemos bolo rei. Só comi uma vez.
Aproveitei para dizer que
meu nome era Pedro, e, para o deixar mais a-vontade, acrescentei que ficaria muito contente se ele me tratasse
pelo nome. Esboçou um sorriso frouxo. Continuava a saborear o bolo,
mastigava com lentidão como a querer
deixar dentro de si, por tempos
infindáveis, aquele sabor. Quando acabou de comer timidamente perguntou:
- Senhor,posso pedir uma
bola de Berlim?
Voltei a pedir para me
chamar pelo nome, e sempre em ritmo folgazão respondi que podia pedir o que
quisesse, mas quando a fatia chegou de imediato começou a embrulhá-la num
guardanapo de papel. Admirado quis saber porquê.
- É para minha irmã Sónia.
Ela gosta muito. – e, sem pressas, como se a resposta fosse a coisa mais
natural do mundo, bebericou um pouco do
chocolate quente.
Desviei os olhos atingido
pelo este gesto tao belo. Mas tranquilizei-o, insisti que podia comer o que
quisesse, depois pensaríamos na sua irmã, combinado? Concordou, e a guloseima
depressa se misturou na fome que tinha mas contida. E então falou.
Chamava-se João, ia fazer
sete anos em Março próximo, e vivia com a mãe e a irmã, mais nova que ele dois
anos, numa casinha perto da Areosa. A casa só tinha um quarto, e por isso
dormiam os três na mesma cama. Não tinha pai, o pai tinha morrido num acidente
de motorizada quando ele tinha quatro anos, repetia a mãe muitas vezes, e
sempre que o fazia chorava. Vinha do trabalho mas um camião desgovernado
apanhou-o na sua mão e matou-o. Lembrava-se bem dele, e tinha saudades, muitas.
Os olhos de repente perderam
brilho e o rosto afundou-se numa tristeza súbita e muitas vezes repetida.
Passou a manga do blusão pelos olhos já húmidos.
- Sabes, minha mãe trabalha
muito e passa o tempo todo a chorar.
Em gestos lentos bebeu o
resto do chocolate e olhando para mim com os olhos cheios de gratidão:
- Obrigado, Pedro.
De repente, num gesto
espontâneo, levantou-se e abraçou-me. Eu tive de refrear a emoção, nesse
instante uma lágrima ameaçou desprender-se, e, tocado pelo seu gesto tão meigo, envolvi-o também num abraço atacado por uma ternura quase paternal… Querendo
disfarçar minha comoção imprimi à voz um tom alegre e atirei:
- Vens comigo ao balcão?
Pedi ao empregado para embrulhar um bolo rei, uma dúzia de rabanadas
e uma outra de filhoses. Depois pus-lhe o braço por cima dos ombros e saímos do
pão quente. O meu carro estava ali perto, chegámos depressa. Pedi-lhe para
entrar, e já dentro da viatura, voltado para o meu amiguinho:
- Posso levar-te a casa?
Entusiasmado logo respondeu
que sim, mas com a mesma impetuosidade com que disse que sim retraiu-se,
dominado por pensamento inesperado. Estranhei, quis saber o porquê da mudança
tão repentina de sua reação.
- Minha casa é muito
pobrezinha, tenho vergonha…
Fiz-lhe uma festa no nariz,
ele achou graça e riu. E acabei por levá-lo a casa.
Já à mesa, o prato fumegante
do bacalhau e das couves como manda a tradição, contei o que se tinha passado,
e logo todos quiseram saber como tudo tinha acabado. Tive de contar tudo tintim por tintim. No final do meu relato, e com a aprovação tácita de toda a família pelo meu comportamento, minha avó, nos seus enérgicos e lúcidos 85 anos, com o
dedo em riste voltado para meus pais, meus irmãos e os dois sobrinhos, ordenou:
- Amanhã vamos lá a casa
dele e levamos o que arranjarmos. E comida também.
No dia seguinte batemos à
porta de alguns vizinhos e amigos mais chegados, expusemos a razão do nosso
pedido, e assim, por volta do meio dia, aparecemos em casa do meu amiguinho
João carregados de roupas, brinquedos e comida para toda a família.
- Partilhar é uma parte da
nossa Felicidade!
Foi a primeira vez que ouvi
a palavra partilha, mas nunca mais a esqueci!
Aquele foi um Natal
verdadeiramente feliz.
P. Coura, 12/12/2014
Alfredo Maioto
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