2014/12/20

Uma História de Natal Escrita por Alfredo Maioto



UM NATAL FELIZ

Vi-o e espequei. Ele tinha o rosto completamente espetado contra o vidro devorando todos os bolos expostos na montra, engolindo em seco um a um. As mãos, essas,  estavam refugiadas nos bolsos e o corpo todo encolhido em luta contra o frio que imperava. Aproximei-me e sorri-lhe. Primeiro olhou para mim com receio, mas depois, ao ver meu sorriso franco, desarmou um pouco. Aproveitei a brecha.
- Tens fome? – perguntei.
Que pergunta tão estúpida a minha! A fome, juntamente com o frio,  estava bem estampada em seu rosto! Mas a verdade é que eu apenas pretendia meter conversa, e essa pergunta, pecando por imprópria, foi aquela que primeiro despontou na minha cabeça. Ele acenou que sim, receoso ainda quanto às minhas pretensões. Murmurei baixinho um “ anda comigo “ depois estendi-lhe a mão que ele aceitou timidamente e entrámos na confeitaria. Lá dentro uma agitação intensa e um calor sufocante. Os empregados corriam em mangas de camisa dum lado para o outro numa azáfama desritmada, e as pessoas movimentavam-se apressadas na tentativa de comprar o bolo rei para a ceia de Natal. Colocado por cima da máquina de café, no meio da sala, o relógio de parede assinalava as cinco horas da tarde.
Casualmente um casal levantou-se e logo aproveitei para me apossar da mesa, e sentámo-nos.
O meu amiguinho, contudo,  sentia-se deslocado do ambiente, sem dúvida nada acostumado a frequentar ambientes como aquele. Envergava um blusão azul com gola em vermelho muito gasto já, mas limpo, embora ligeiramente grande para a sua idade, herança, talvez, de algum irmão mais velho, pensei. Descalçando as luvas e tirando o cachecol, ao mesmo tempo desejoso de conhecer sua história, abri-me num sorriso largo e disse-lhe:
- Hoje é dia de Natal, podes comer os bolos que quiseres.
Os olhos arregalaram-se, incrédulos, e instintivamente o corpo atirou-se para a frente cheio de ansiedades. Todos os que quisesse? E os que quisesse? Respondi que sim, e de seguida chamei o empregado. Primeiro saciar-lhe a fome, e só depois é que seria tempo para saber quem ele era. Reparei que seus modos eram recatados, notava-se que tinha uma educação bastante esmerada apesar das roupas pobres, e o  olhar era doce, meigo, inspirador de confiança. Sobrepondo-se ao ruído existente no espaço, aproximou o rosto do meu e esboçando um sorriso humilde, baixinho:
- Obrigado.
Um canal da televisão apresentava um programa com músicas natalícias, enquanto um outro passava um filme adequado à época.  Curiosamente, contudo, reparei que o menino tinha pedido ao empregado apenas uma fatia de bolo rei. E quando ela chegou, em vez de comer sôfregamente como eu esperava, primeiro pegou nela com o mesmo carinho com que bem poderia ser uma prenda, mirou-a dum ponta à  outra, cheirou-a e só depois é que deu uma pequena dentada. Perguntei, intrigado, se não estava boa, mas ele logo me tranquilizou:
- Não, senhor. Nós é que lá lá em casa, como não temos dinheiro, não comemos bolo rei. Só comi uma vez.
Aproveitei para dizer que meu nome era Pedro, e, para o deixar mais a-vontade, acrescentei que  ficaria muito contente se ele me tratasse pelo nome. Esboçou um sorriso frouxo. Continuava a saborear o bolo, mastigava  com lentidão como a querer deixar dentro de  si, por tempos infindáveis, aquele sabor. Quando acabou de comer timidamente perguntou:
- Senhor,posso pedir uma bola de Berlim?
Voltei a pedir para me chamar pelo nome, e sempre em ritmo folgazão respondi que podia pedir o que quisesse, mas quando a fatia chegou de imediato começou a embrulhá-la num guardanapo de papel. Admirado quis saber porquê.
- É para minha irmã Sónia. Ela gosta muito. – e, sem pressas, como se a resposta fosse a coisa mais natural do mundo,  bebericou um pouco do chocolate quente.
Desviei os olhos atingido pelo este gesto tao belo. Mas tranquilizei-o, insisti que podia comer o que quisesse, depois pensaríamos na sua irmã, combinado? Concordou, e a guloseima depressa se misturou na fome que tinha mas contida. E então falou.
Chamava-se João, ia fazer sete anos em Março próximo, e vivia com a mãe e a irmã, mais nova que ele dois anos, numa casinha perto da Areosa. A casa só tinha um quarto, e por isso dormiam os três na mesma cama. Não tinha pai, o pai tinha morrido num acidente de motorizada quando ele tinha quatro anos, repetia a mãe muitas vezes, e sempre que o fazia chorava. Vinha do trabalho mas um camião desgovernado apanhou-o na sua mão e matou-o. Lembrava-se bem dele, e tinha saudades, muitas.
Os olhos de repente perderam brilho e o rosto afundou-se numa tristeza súbita e muitas vezes repetida. Passou a manga do blusão pelos olhos já húmidos.
- Sabes, minha mãe trabalha muito e passa o tempo todo a chorar.
Em gestos lentos bebeu o resto do chocolate e olhando para mim com os olhos cheios de gratidão:
- Obrigado, Pedro.
De repente, num gesto espontâneo, levantou-se e abraçou-me. Eu tive de refrear a emoção, nesse instante uma lágrima ameaçou desprender-se, e, tocado pelo seu gesto tão meigo, envolvi-o também num abraço atacado por uma ternura quase paternal… Querendo disfarçar minha comoção imprimi à voz um tom alegre e atirei:
- Vens comigo ao balcão?
Pedi ao empregado para  embrulhar um bolo rei, uma dúzia de rabanadas e uma outra de filhoses. Depois pus-lhe o braço por cima dos ombros e saímos do pão quente. O meu carro estava ali perto, chegámos depressa. Pedi-lhe para entrar, e já dentro da viatura, voltado para o meu amiguinho:
- Posso levar-te a casa?
Entusiasmado logo respondeu que sim, mas com a mesma impetuosidade com que disse que sim retraiu-se, dominado por pensamento inesperado. Estranhei, quis saber o porquê da mudança tão repentina de sua reação.
- Minha casa é muito pobrezinha, tenho vergonha…
Fiz-lhe uma festa no nariz, ele achou graça e riu. E acabei por levá-lo a casa.
Já à mesa, o prato fumegante do bacalhau e das couves como manda a tradição, contei o que se tinha passado, e logo todos quiseram saber como tudo tinha acabado. Tive de contar tudo tintim por tintim. No final do meu relato, e com a aprovação tácita de toda a família pelo meu comportamento, minha avó, nos seus enérgicos e lúcidos 85 anos, com o dedo em riste voltado para meus pais, meus irmãos e os dois sobrinhos, ordenou:
- Amanhã vamos lá a casa dele e levamos o que arranjarmos. E comida também.
No dia seguinte batemos à porta de alguns vizinhos e amigos mais chegados, expusemos a razão do nosso pedido, e assim, por volta do meio dia, aparecemos em casa do meu amiguinho João carregados de roupas, brinquedos e comida para toda a família.
Ao almoço minha mãe, o rosto iluminado por uma alegria orgulhosa, e enquanto saboreávamos o tradicional farrapo velho e também cabrito assado no forno, balbuciou:
- Partilhar é uma parte da nossa Felicidade!
Foi a primeira vez que ouvi a palavra partilha, mas nunca mais a esqueci!
Aquele foi um Natal verdadeiramente feliz.
P. Coura, 12/12/2014
Alfredo Maioto

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