2015/01/20

Memória da Guerra Colonial/Alfredo Maioto



O CHEFE DA ALDEIA

Ainda vinha longe e já o Sargento Walker Rosenberg, nos seus 1,90 de altura, espadaúdo, levantou a mão num gesto efusivo e logo a seguir, um sorriso enorme no rosto bonacheirão, me estendia a manápula para me cumprimentar.
- Hello my friend.
Conheci o Sargento Walker na operação anterior, perdido dentro do nosso quartel sem saber onde encontrar um local para comer e dormir. Resolvi-lhe o problema e a partir desse momento criou-se entre nós uma amizade espontânea e simples. Aquela era a segunda vez que atuávamos em conjunto com forças rodesianas, uma estratégia conveniente tanto para as nossas forças quanto para eles mesmos. Afinal o inimigo era o mesmo
Todas as manhãs, por volta das seis horas, o sol desperto mas o calor ainda sonolento, partíamos em coluna, normalmente três viaturas, até ao posto de Manengau, localizado na fronteira da Rodésia com Moçambique.
A nossa missão consistia em escoltar até Tete, capital do distrito com o mesmo nome, os camiões Tir que vinham carregados da África do Sul e que seguiam para o Malauí ou para Cabora Bassa, ainda em construção.
O Sargento Walker, na casa dos quarenta anos, era de descendência judia, tendo-se alistado no exército rodesiano como mercenário onde bem poderia servir-se de toda a experiência adquirida na guerra israelo-palestiniana. Era uma pessoa afável, experiente, seguro de si mesmo, olhar firme e gestos calmos, e, apesar da enorme envergadura física, que o tornava bem visível onde quer que estivesse, era uma pessoa de quem se gostava facilmente.
Naquela manhã de  Setembro, na raia da fronteira, deviam estar cerca de 150 homens incumbidos de procederem à “limpeza”. Para os rodesianos não existiam prisioneiros, que são sempre empecilhos. Todo preto apanhado no mato era “limpo” no sentido figurado do termo. Atuavam como profissionais, bem armados, nós como amadores e com armamento ultrapassado. E nestes pormenores residia a extrema diferença entre os dois exércitos!
Desta vez, contudo, a nossa Companhia, empenhada em resultados práticos, fornecera dois pelotões, os restantes elementos pertenciam aos vizinhos rodesianos. Sabíamos que os turras, descidos de Cabo Delgado, andavam na nossa zona em ação psicológica, saltitando dum lado para o outro ao longo da fronteira preparando os ataques. Tínhamos noção que mais dia, menos dia, a guerra rebentava!
- Vamos à limpeza! - Ordenou o alferes Esteves responsável pelas nossas forças.
Foram-me dadas instruções para o meu pelotão caminhar ao longo da fronteira até chegar a uma aldeia chamada Wissinga. Aí novas ordens seriam dadas. Wissinga era uma aldeia pequena encaixada entre dois morros e formada por algumas palhotas onde viviam, segundo indicação do último relatório de 1968, cerca de 50 pessoas.
Quando lá chegámos, por volta do meio-dia, a primeira impressão era que a aldeia estava vazia. Nem vivalma. O calor já apertava. Dois soldados ficaram de sentinela enquanto os outros se estenderam ao longo do aldeamento cercando-o por completo.
O silêncio falava fundo, inquietante. Procurei a sombra de uma palhota e sentei-me no chão, a G3 a meu lado sempre pronta a ser usada se necessário. Tirei do bornal uma lata de atum e um sumo, cortei um pouco de pão já do dia anterior e ligeiramente ressequido devido ao calor, e preparava-me para saborear o almoço.
Uma sombra projetou-se no solo. Levantei os olhos. À minha frente estava um menino sem idade, apenas uma criança de rosto magro, em tronco nu, calções rotos, pés descalços, olhando extasiado para as minhas mãos.
Os olhos estavam carregados de sonhos vazios, inundados de indiferenças, como se a vida estivesse limitada apenas àquele instante de fitar uma lata de atum e um sumo. Caídas ao longo do corpo, pesadas de um cansaço sem nome, as mãos seguravam um mundo sem presente nem futuro, cheias de desesperanças. E quando nossos olhares se cruzaram li nos seus olhos uma súplica contida e impossível de soltar, um desejo irresistível de ter o que tanto queria mas que nunca iria ter. Meu coração encolheu-se de compaixão. E todo meu ser estremeceu.
Instintiva e inevitavelmente estendi-lhe o meu almoço. Surpreso olhou para mim possuído por uma humildade comovente, hesitante em aceitar. Mas depois, muito devagar, confiante, aproximou-se e pegou no que eu lhe estendia esboçando um sorriso tímido. E afastou-se. Segundos depois, porém, voltou mas com ele vinham mais crianças, e mais atrás homens e mulheres da aldeia que se postaram à minha frente em silêncio, corpo estreito, barrigas vazias. Mas, para espanto meu, a criança não tinha comido o que eu lhe tinha dado, continuava a segurar nas mãos a minha oferta como uma dádiva. Perplexo levantei-me. Contemplando-me, quietas, silenciosas, perto de 30 pessoas pediam, com uma humildade chocante, comida para a sua fome. De repente alguém me deu soco no estômago que me avassalou…
O cabo Ribeiro, que tinha assistido a tudo isto e se postara a meu lado, acotovelou-me:
- E agora? 
E agora, meu Deus? Tinha de encontrar uma solução. Raciocinei rápido. Perguntei-lhe se podia dispensar um pouco da sua ração de combate, e logo me respondeu que sim. E de imediato uma lata de salsichas e outra de sardinhas surgiram em suas mãos. Determinado ele mesmo logo tomou a iniciativa de falar com os camaradas para granjear mais alimentos. Todos contribuíram, e no final conseguimos recolher 60 latas. 
Virado para os habitantes perguntei se algum deles era o chefe da povoação. Como ninguém se mexeu pedi a um soldado africano que servisse de intérprete. Então um homem de cabelo grisalho, por fim, alto e magro, dentes meio apodrecidos, adiantou-se. Era ele o régulo. Pedi ainda ao soldado que transmitisse que aqueles alimentos todos, desde sumos a pão, eram para serem distribuídos por todas as pessoas da aldeia. Ninguém falava. No ar um silêncio com cheiro a emoção. Eles simplesmente olhavam para nós sem nada dizer, mas com a gratidão sobejamente estampada nos olhos e no rosto. O cabo Ribeiro quebrou o gelo.
- Já ganharam o almoço, seus malandros! – Tentou gracejar, mas a voz entupiu-se.
Momentos depois, via rádio, chegaram instruções para nos dirigirmos a uma aldeia chamada Sassambo e localizada a uns 10 quilómetros de distância. Consultando o mapa era fácil concluir que para lá chegar tínhamos duas alternativas. A primeira, a mais rápida, seria através da pequena ponte de madeira existente sobre o próprio rio Sassambo, a linha que separava Moçambique da Rodésia. A outra seria através dum trilho pelo mato que nos levava cerca de 200 metros adentro do território rodesiano. A marcha seria mais lenta por causa da vegetação densa, mas talvez mais segura. Porque muito dificilmente nos cruzaríamos com os turras num trilho tao apertado! A opinião generalizada optou pela primeira.
Quando estávamos para partir toda a aldeia veio ter connosco, como que numa despedida. Ao ver que iriamos tomar o caminho da ponte sobre o rio Sassambo o régulo postou-se à minha frente e, abanando a cabeça, com a mão indicava para seguir pelo trilho do mato. Uma vez mais solicitei ao soldado tradutor para perguntar a razão daquela informação, mas o chefe da aldeia insistia sempre no mesmo: deveríamos ir pelo mato. Hesitei. E se fosse uma armadilha? Adivinhando meu pensamento o régulo aproximou-se de mim e postou-se à minha frente encarando-me fixamente. O seu olhar não cedeu um milímetro, e a ternura neles posta era transparente. Li confiança nos olhos e no rosto. Mas acima de tudo muita gratidão. Subitamente estendeu-me a mão e balbuciando em inglês:
- Obrigado.
De repente um clarão me varreu por completo, e entendi com a maior das durezas o drama da população encurralada entre dois fogos e obrigada a pactuar com ambas! Decidi seguir o meu instinto acreditando que aquele homem magro e de dentes gastos não me iria trair, e por isso decidi aceitar o seu conselho. Não me enganei, felizmente. Chegámos a Sassambo sem qualquer percalço.
No dia seguinte, porém, já no quartel e finda a operação, soubemos que os rodesianos tinham sofrido uma emboscada intensa bem junto à ponte de madeira construída sobre o rio Sassambo…

P. Coura, 05/01/2015
Alfredo Maioto



4 comentários:

José Cerdeiral disse...

Infelizmente houveram muitos casos destes
naquela terra e naqueles tempos.
só que nem todos tiveram o mesmo fim,e
muitos deles por falta da sensibilidade
que tiveram estes homens e o seu comandante.

Anónimo disse...

Sim, Senhor Maioto bela discrição. Este possivelmente foi um dos muitos casos que enfrentamos durante a nossa comissão.
Fonseca

Anónimo disse...

Parabéns, este amigo do Sr. Vitalino, penso que assim seja, relatamos os episódios com uma clareza e sensibilidade que até parece que acontecei ontem.
Muito bem gostei imenso.

Anónimo disse...


Já não é a primeira vez que vejo neste blog, trabalhos do mesmo autor sobre guerra colonial. Acho-os interessantíssimo e de uma grande realidade.
Carlos M. Martins
P. Maçãs