Dia 21 de Abril de 1971, partia do Cais da Rocha o
“Niassa”, com mais umas centenas de jovens rumo a Moçambique.
A Companhia 3352 fazia parte dessa viagem rumo ao desconhecido
por cerca de dois anos, anos esses que para muitos de nós seria autêntico flagelo.
Passadas mais de quatro décadas, muitas são as feridas que ainda não sararam.
O meu blog com a preciosa colaboração do nosso
camarada de armas Maioto, fazemos o possível para manter viva a nossa "História" na memória curta
dos Homens.
A EMBOSCADA - ou uma
história real.
Na cantina do Fragoso, sobre a mesa uma caneca de
vidro de dois litros de champarrião e uma travessa bem recheada de bacalhau
esfiapado adornado com cebola, nós conversávamos balelas enquanto a tarde ia
caindo acelerada, saboreando um dos poucos dias de descanso da nossa guerra.
Era um desses momentos relaxantes em que o corpo se enrolava no esquecimento e
a mente tentava recuperar, minimamente que fosse, um pouco do equilíbrio. O sol
escondia-se rápido por detrás das palhotas do aldeamento, espalhando aquele tom
alaranjado tao único do pôr-do-sol africano. E, sentados na esplanada da cantina,
derretíamos ambos a alma na contemplação de tal maravilha!
Rádio ao ombro, guiando a sua ginga numa ventura
total, cantarolando em tom excessivo, sorriso largo na pele luzidia, passou um
negro na estrada que seguia para Tete. Em sentido contrário, justamente na
direção da cidade da Beira, um camião de carga buzinou como aviso para os
vários transeuntes que circulavam despreocupadamente na faixa de rodagem. Mais
à frente, encostada à palhota, uma mulher ainda jovem amamentava o seu bébé. A
cem metros de distância de nós, à esquerda, a rotunda que oferecia todos os
destinos do mundo: o quartel, logo ali, silencioso e encaixado dentro do arame
farpado; à direita seguia-se para a fronteira da Rodésia, e à esquerda levava
para Vila Pery/Beira. Aquela era, para nós, a encruzilhada mais importante do
mundo!
Inesperadamente, copo na mão, tu perguntaste:
-
Ó Lamego, como será?
Não entendi a pergunta, e inquiri curioso:
-
Como será o que, Fróis?
-
A emboscada, pá. Como reagiremos nós debaixo de fogo? – Por segundos apenas
olhaste-me fixamente, para logo a seguir, quase arrependido de teres levantado
a questão, bebericares um pouco do champarrião mas à espera da minha resposta.
Fui adiantando que não acredito em heróis por antecipação. Para mim é o momento
que leva as pessoas a agirem instintivamente, sem premeditação alguma, e é esse
clic mágico e repentino, vindo lá do fundo de nossa natureza, que converte as
pessoas normais em heróis temporários.
Ainda nem sequer pensava vir para Moçambique e li
numa revista um diálogo que na altura defini como imaginação pura! Debaixo de
fogo dois amigos brincavam atirando piada por sobre as rajadas. Dizia um:
-
A festa está rija, pá! – Ao que o outro logo respondeu: - Se está! Até parece o
nosso São João do Porto!
Não creditei fosse possível tamanha descontração,
sempre achei aquilo exagero, especulação pura, por considerar que o medo
acagaçaria mesmo o mais valente que caísse numa emboscada. Nessa altura, quando
te contei isto, tu ouviste com atenção, mas no fim riste, divertido.
- Uns brincalhões esses gajos, não achas? – Esvaziaste
o copo e espetaste o garfo na travessa do bacalhau e soltaste uma gargalhada
larga.
Lembro que era Domingo e o dia quinze de Agosto,
porque alguém atirou lá do banco de trás da viatura:
- Eh malta, hoje lá no “Puto” é feriado, dia de
Nossa Senhora, e nós aqui a trabalhar como camelos fazendo mais uma coluna!
Todos ouviram distintamente, mas ninguém
respondeu. Havia temas que doíam muito, então o melhor era não tocar nesses
assuntos. Este era um deles… Eu vinha dentro da Toyota modelo 6000, de caixa
aberta, ao lado do condutor, dormitando, um olho aberto, outro fechado, a G3 ao
alcance da minha mão direita. Atrás na viatura, em bancos improvisados e sem taipal
para que, em caso de ataque, pudessem mais facilmente saltar, vinham duas
secções do meu pelotão.
De repente um tratatata que me pareceu fazer parte
do meu sonho. Mas depressa caí na realidade quando ouvi a voz do condutor
Martins bradar que era uma emboscada. Automaticamente, com a mão esquerda abri
a porta da viatura e com a outra peguei na arma, saindo a seguir e rebolando na
picada. Ouvi dois pequenos silvos e algumas pedrinhas saltaram mesmo a meu
lado. As balas quase me apanhavam. Bastardos!
Caí a teu lado na pequena ribanceira para onde o
Martins deixou cair a carrinha. Já deitado, mas ainda em sobressalto, e na
tentativa de recuperar a consciência do local e das circunstâncias, virei a G3
para o ar e dei um tiro. Tu achaste piada e perguntaste:
- Queres matar algum pássaro?
Tirei a mão do gatilho, coloquei a patilha em segurança
e perguntei ainda estremunhado:
- Para onde vamos? Rodésia ou quartel?
Tu riste de novo, disseste que estávamos de
regresso ao quartel, e eu argumentei que me parecia precisamente contrário, até
que o condutor, ali ao lado, meteu-se na conversa para dissipar dúvidas: tu
tinhas razão, vínhamos de regresso ao quartel. Bonacheirão picaste-me o olho e
encolheste os ombros ciente de que a razão estava do teu lado. Fui ao bolso da
camisa e vi as horas no meu relógio já com muito pó e muitos quilómetros de
picada: eram 10,30. A essa hora, de facto, era costume já estarmos a chegar ao
aquartelamento, por isso nem precisava de perguntar.
Nítidos e insistentes chegavam-nos os tiros das
Kalashinov dos turras, enquanto o pequenino Fontes usava o morteiro 60 abanando
os nossos tímpanos com o barulho do rebentamento. O matraquear das G3 dos dois
pelotões que formavam a coluna misturava-se com o som frouxo das armas de
nossos inimigos, a que jocosamente batizámos de “costureirinhas”. Sobrepondo-se
a toda a agitação da emboscada chegaram-me imprecisos insultos atirados pela
nossa malta aos adversários. A meu lado, como se aquela guerra não fosse tua,
tranquilamente puxaste o maço de tabaco do bolso da camisa e acendeste um
cigarro. Estendeste-me o maço e perguntaste se eu queria fumar.
- Vai-te lixar, Fróis. Sabes bem que não fumo.
Lançaste uma baforada de fumo para o ar. E
pausadamente:
- Está animado, sim senhor! Mas que receção esta,
pá! – E numa fração de segundo bateu na minha lembrança aquele diálogo lido há
muito tempo numa revista e que tinha definido como ficção. Como era possível!
Meu Deus, que coincidência.
O tiroteio abrandou. Esporádicos ainda se ouviam
alguns tiros.
Alguém gritou que o Ernesto estava tombado no meio
da picada e a precisar dos cuidados do enfermeiro. De longe, dos escombros do
infinito, pareceu-me, outro alguém disse que o Manteigas precisava de ser
evacuado.
A emboscada parecia ter chegado ao fim, agora
tínhamos de enfrentar a realidade que consistia em ver o estado dos feridos.
Via rádio o soldado transmissões pediu um hélio, que chegou meia hora depois
para levar os 3 feridos para o hospital de Tete. O Ernesto estava mal, tinha
batido com a cabeça no chão e aparentava traumatismo craniano não dizendo coisa
com coisa; o Ferreira tinha torcido um pé, e gracejava para não contarem com
ele para o jogo de futebol inter pelotões; e o “Sargento” queixava-se do ombro
esquerdo, pedindo insistentemente ao enfermeiro um comprimido para lhe tirar as
dores. Eram as consequências, visíveis e normais, resultantes da precipitação
ao saltar com a viatura em andamento. Mais fatídicas que os tiros dos turras.
Aproximaste-te de mim e com a voz tocada:
- Mais uma, pá. Desta vez Nossa
Senhora cuidou de nós. – E baixinho só para eu ouvir: - Agora já sei como é. E
não gostei nada!
Eu percebi bem onde querias chegar. Depois, num
trejeito de consolação, deste uma palmada amigável no meu ombro e olhando-me
bem nos olhos, como uma súplica:
- Que Nossa Senhora nos proteja sempre! – e
afastaste-te cabeça vergada e olhos baixos na picada.
Alfredo Maioto
P. Coura, 12/04/2015
2 comentários:
Também eu fiz a viagem no Niassa ida e volta para a Guiné.
Acho a história muito bem escrita.
É preciso mesmo avivar a memória de muitos gajos que só sabem dizer babuzeiras.
João Mendes um ex-combatente da Guiné
JÁ SE TORNA UM HÁBITO ESTE BLOG ESCREVER E DIVULGAR COISAS RELACIONADAS COM A GUERRA DE ÁFRICA.
ACHO QUE SÃO BEM ESCRITAS CHEIAS DE REALISMO.O IMPORTANTE É CONTINUAR.
JOÃO SILVA
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