2012/04/21

Memórias da Guera Colonial




LEMBRANÇAS
Faz hoje precisamente 41 anos, que eu, o Maioto, o Sousa, o Morais, o Francês, o Peixoto e mais umas centenas de jovens embarcamos no velhinho «Niassa» rumo a Moçambique. Foram tempos difíceis, que iriam marcar para sempre as nossas vidas.
Chocámos ombro com ombro na Praça, em pleno centro da cidade, na correria de quem deixa mais um dia de trabalho para trás e precisa de respirar o sossego do seu lar.
- João! - Gritei eu.
E aconchegamo-nos num abraço longo a cheirar a saudade. O abraço do João era autêntico, acolhedor, e quem caia em seus braços longos e fortes sentia-se protegido qual barco em porto de abrigo… Passadas as perguntas banais tipo tudo bem contigo? E a família como vai? o João encolheu-se numa lembrança súbita como que há muito guardada dentro de si mas sem a poder repartir. Aparentemente era assim, mas a verdade é que sempre que nos víamos lá voltavam sempre as mesmas lembranças… Inevitavelmente! O rosto das pessoas que passavam por nós era fechado e cheirava a angústia de não saber se o “seu” emprego existiria no dia seguinte.
- Lembras-te aquela noite de Maio ???? – Atira, e estica os olhos a ver minha reação.
Naquela noite de Maio, num recanto pequenino de Moçambique chamado Changara, o João viu-me sozinho na cantina do Chaleta. Anoitecia, no horizonte aquele tom de fogo do por do sol africano. Olhou para mim, foi dentro do balcão e passados segundos sentou-se a meu lado com uma Manica na mão e um copo na outra.
- A noite é uma criança – disse. E naquela noite de Maio de 73 o tempo deixou de contar do mesmo jeito simples e indiferente com que se sumiu o número de cervejas bebidas…
Mas eu conhecia muito bem o meu amigo João. Seu ar era de angústia, ombros caídos, como que carregando um peso tremendo neles, remoído por uma mágoa calada só para si e sem forças para a distribuir. Digo que o vejo cansado ao que ele de imediato responde:
- É Natal, sabes?
Naquele Natal de 1972, precisamente na noite de consoada, o aquartelamento que ele comandava, na zona do Songo, foi atacado pelo turra. Foi um ataque a serio e que durou perto de duas horas. Quando a ajuda chegou, através dos Comandos situados a 30 kms da barragem, já os turras tinham partido deixando para trás vários feridos. Do escuro de repente alguém o chamou: o cabo Silva, seu amigo intima e para cúmulo da sua terra, Mira d´Aire, tinha sido atingido. E nessa noite de Natal o seu amigo Silva morreu em seus braços …
Meu caro João! Volvidos quase 40 anos após este acontecimento o João continua a sofrer o sentimento de culpa como se fosse ele o responsável pela perda do seu amigo. Explico uma vez mais, cem vezes, mil, como sempre faço, que ele fez todos os possíveis, chamou o helicóptero, chamou o medido, fez tudo que podia. Mas mesmo nesta véspera de Natal, apesar de tantos anos corridos, a resposta é a mesma de sempre:
- Mas ele morreu em meus braços…
De repente seu rosto afunda-se numa dor ainda mais triste, e as rugas ainda mais vincadas. Nos olhos baila uma lagrima vidrada. Como envelheceu de repente o meu amigo João! Carinhosamente dou-lhe uma palmada no ombro e murmuro um vigoroso “vá! Força! Já passou!” e abro-me num sorriso encorajador. Ele pigarreia, limpa os olhos com um lenço de papel e esboça um sorriso fraco.
- Desculpa – murmura!
Não resisto a tamanha ternura e, indiferente a quem nos olhasse de soslaio, aperto-o num abraço longo.
A noite caiu de vez. Nos ares música natalícia. Estico o mais que posso a gola do meu sobretudo e fico-me a ve-lo afastar-se. Já vai longe quando se volta para trás e grita por entre o frio e as pessoas:
- Feliz Natal, Fonseca!
Ergueu as mãos num gesto largo a saber a despedida e perdeu-se no meio da multidão. Duas semanas depois, precisamente no dia 3 de Janeiro de 2012, fui ao seu funeral…
Alfredo Maioto 

3 comentários:

Anónimo disse...

Parabéns Cara D’Anjo é o único nesta terra que continua a manter bem viva a nossa memória.
Como dizes, foram tempos difíceis onde tivemos que abandonar tudo até os nossos sonhos, e os que regressaram vieram amargos e cheios de mágoas.
Já agora também parabéns ao Alfredo Maioto, pelo que entendo é um veterano como nós, que pertence aquele grupo que foi abandonado e esquecido por uma pátria que há muito tempo perdeu a sua honra e glória…
J.M.

Anónimo disse...

Bom trabalho sr. Vitalino Cara de Anjo.

Anónimo disse...

PARABENS MEU BOM AMIGO, DESCULPA DE SÓ AGORA ESTAR ACOMUNICAR COM CONTIGO, SABES EU TENHO ANDADO NA ESCOLA NAS NOVAS OPORTUNUDADES, UM ABRAÇO AO FURRIEL MAIOTO, E UM ABRAÇO DESTE TEU AMIGO


FERNANDO SOUSA