O TURRA
O meu inimigo de outrora falava com lentidão como se fosse
dono do tempo. Falava em gestos curtos e simples. Eu queria responder que sim,
que tinha estado em Changara entre 1971
e 1973, mas as palavras ficaram presas por um sufoco esquisito. Pigarreei, voltei a pigarrear, e
desculpei-me dizendo que estava constipado. O Tatia, sempre atento, sorriu, deu-me uma palmada no ombro.
- António, meu amigo, os anos passaram não há mais guerra
colonial… - e soltou uma gargalhada leve. Eu acenei que sim, voltei a tossir
com estrondo na tentativa vã em
recompor-me, e balbuciei meio sem jeito:
- Tens razão, já la vao quarenta anos… Quase envelhecemos.
Rimos os três, e cada um de nós apontou com o olhar os cabelos
brancos de cada um de nós. Vieram mais duas Laurentinas e mais dois pratos de
marisco. De repente o tal Cassamo disse:
- Pensa muito na sua
guerra, António?
Bateu forte a pergunta. Mexi-me e remexi-me na cadeira sem
atinar com a posição adequada.
- Sim, penso . Não dá
para esquecer – cruzei as mãos, inquieto. Depois olhei-o firme nos olhos e
disparei: - Nos vivos e nos que morreram…
Ele entendeu o tom endurecido de minhas palavras mas não se
perturbou. Bebericou mais um pouco da sua Laurentina e com suavidade balbuciou:
- Peço desculpa pelos seus amigos que morreram. São as contingências da guerra e uma guerra
causa sempre muita dor em ambos os lados…
Senti autenticidade nas suas palavras e na humildade de
repente despontada no seu rosto. Os olhos diminuíram de brilho. E eu, em vez de
amansar o turbilhão que me consumia a alma, ainda fui mais caustico ao dizer:
- Voces mataram meu
melhor amigo numa emboscada no dia 15 Agosto de 1972… Dois tiros na cabeça
vindos do meio do capim…
Ele suspendeu o gesto de meter à boca o camarão e olhou para
mim muito sério. No ar, de repente,
rebentou um silencio com cheiro a pólvora. Da rua, aqui e além, sem
pressas, chegava-nos o ruído dos carros a passarem. E então, numa voz baça e
quase imperceptível, Cassamo confidenciou:
- Fui eu que comandei esse ataque… Lamento, lamento muito.
Pensei que, arrependido, me fosse abraçar tão perturbado o
vi. Os ombros subitamente caíram ao longo do corpo devido ao enorme peso da
mágoa. E pude ver, nítida e autentica, bem funda, uma lágrima despontada em
seus olhos… Engoli em seco. E num segundo, às pressas, emborquei a cerveja que ainda
tinha no meu copo.
- Isto é maning triste, pá – era o Tatia mais uma vez,
sempre atento ao desenrolar do nosso encontro. E brincalhão - Até parece que
estamos em algum velório… Nós os três
sabemos bem o que é a guerra, vamos beber um copo por todos os nossos amigos
que andaram la…
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