2012/12/26

Memórias da Guerra Colonial / Por Alfredo Maioto

Capitulo 2 
O TURRA

O meu inimigo de outrora falava com lentidão como se fosse dono do tempo. Falava em gestos curtos e simples. Eu queria responder que sim, que tinha estado em Changara entre 1971  e 1973, mas as palavras ficaram presas por um sufoco  esquisito. Pigarreei, voltei a pigarrear, e desculpei-me dizendo que estava constipado. O Tatia, sempre atento,  sorriu, deu-me uma palmada no ombro.
- António, meu amigo, os anos passaram não há mais guerra colonial… - e soltou uma gargalhada leve. Eu acenei que sim, voltei a tossir com estrondo na tentativa vã  em recompor-me, e balbuciei meio sem jeito:
- Tens razão, já la vao quarenta anos…  Quase envelhecemos.
Rimos os três, e cada um de nós apontou com o olhar os cabelos brancos de cada um de nós. Vieram mais duas Laurentinas e mais dois pratos de marisco. De repente o tal Cassamo disse:
-  Pensa muito na sua guerra, António?
Bateu forte a pergunta. Mexi-me e remexi-me na cadeira sem atinar com a posição adequada.
-  Sim, penso . Não dá para esquecer – cruzei as mãos, inquieto. Depois olhei-o firme nos olhos e disparei:  - Nos vivos e nos que morreram…
Ele entendeu o tom endurecido de minhas palavras mas não se perturbou. Bebericou mais um pouco da sua Laurentina e  com suavidade balbuciou:
- Peço desculpa pelos seus amigos que morreram.  São as contingências da guerra e uma guerra causa sempre muita dor em ambos os lados…
Senti autenticidade nas suas palavras e na humildade de repente despontada no seu rosto. Os olhos diminuíram de brilho. E eu, em vez de amansar o turbilhão que me consumia a alma, ainda fui mais caustico ao dizer:
-  Voces mataram meu melhor amigo numa emboscada no dia 15 Agosto de 1972… Dois tiros na cabeça vindos do meio do capim…
Ele suspendeu o gesto de meter à boca o camarão e olhou para mim muito sério. No ar, de repente,  rebentou um silencio com cheiro a pólvora. Da rua, aqui e além, sem pressas, chegava-nos o ruído dos carros a passarem. E então, numa voz baça e quase imperceptível, Cassamo confidenciou: 
-  Fui eu que  comandei  esse ataque… Lamento, lamento muito.
Pensei que, arrependido, me fosse abraçar tão perturbado o vi. Os ombros subitamente caíram ao longo do corpo devido ao enorme peso da mágoa. E pude ver, nítida e autentica, bem funda, uma lágrima despontada em seus olhos… Engoli em seco. E num segundo, às pressas, emborquei a cerveja que ainda tinha no meu copo.
- Isto é maning triste, pá – era o Tatia mais uma vez, sempre atento ao desenrolar do nosso encontro. E brincalhão  - Até parece que estamos em algum velório…  Nós os três sabemos bem o que é a guerra, vamos beber um copo por todos os nossos amigos que andaram la… 
Fim do Capitulo 2


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