O Turra
Levantamo-nos os três, e, como velhos amigos, indiferentes à
meia dúzia de pessoas que la estavam, erguemos os copos e num ápice a cerveja
sumiu-se. A garganta estava seca, precisava mesmo de ser regada, maning regada
mesmo… As emoções estavam a ser fortes demais, como, aliás, sempre imaginei que
fossem… Não podia ser doutra maneira, não podia porque a guerra estava sempre
presente em mim como se num dia distante, sem precisar quando, a tivesse escrito
no meu sangue… Depois as memorias. As memórias eram demasiado vivas para
ficarem esquecidas no tempos… As memórias têm o condão de revivificar mas ao
mesmo tempo corroem, matam…
Depois as palavras soltaram-se. Cassamo vivia na área do Tofo
numa casa humilde construída com esforço e tempo juntamente com a mulher e os 3
filhos. Era feliz na pequena machamba onde cultivava milho, feijão, batata… Não
pensava muito na guerra porque sofreu muito, e o sofrimento não é coisa que se
queira plantar… Chorou lagrimas pelos companheiros mortos pela guerra, passou momentos
de desânimo e descrença. O mato era seu lar, mas nunca deixou de acreditar no
seu ideal… Depois, quando a independência chegou, refugiou-se com a mulher na
sua machamba no Tofo e não mais pegou numa arma.
Quem nos visse tagarelando e rindo daquele jeito diria que
eramos amigos de longa data. Tatia tinha razão ao dizer no começo da nossa conversa:
o que la vai la vai…
A tarde corria quente e rápida. Tatia olhou para o relogio, e
soltou uma pergunta que me soou fria e ao mesmo tempo amarga:
- Vamos embora?
Levantamo-nos. Cassamo olhou para mim com aquele olhar de
menino sossegado e perguntou:
- Voltamos a ver-nos? Eu gostaria muito.
Li em seus olhos a franqueza, e respondi que sim. So que da próxima
vez não viria sozinho, viria com amigos meus que, como eu, lutaram em
Moçambique e que de certeza adorariam conhece-lo. Abraçamo-nos num abraço prolongado
e forte. E senti nesse instante o homem a sobrepor-se ao turra doutro tempo,
quando colocava minas nas picadas e nos emboscava escondido atras das rochas e
do capim… Afinal cumpria seu dever, assim como eu cumpria o meu. Desfez o
abraço soltando um suave “boa sorte” e lentamente começou a afastar-se. De
súbito, porém, a uns bons metros de distância, volta-se para trás, e
pausadamente balbuciou:
- Antonio, na emboscada do dia 15 Agosto de 1972 perdeu o seu
melhor amigo
- Sim
- Eu perdi o meu único
irmão. … E em passos pesados, corpo descaído devido a uma culpa que carregava
há muito tempo e impossível de apagar, afastou-se…
Paredes Coura, 24/11 2012
Alfredo Maioto
Paredes Coura, 24/11 2012
Alfredo Maioto
Changara, Ponte sobre o Rio Luenha
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