2014/10/13

Memórias da Guerra Colonial por Alfredo Maioto - SHERAZADE

Memórias da Guerra Colonial
Por Alfredo Maioto



SHERAZADE
Abdul, mais conhecido por Isuzu, aproximou-se e sentando-se desajeitadamente na cadeira perguntou, ansioso:
- Ó Silva, que fazes logo à noite?
A pergunta soou a estupidez! Ora! Que poderia fazer um militar recém-chegado a uma cidade, que por acaso se chamava Chibuto, mas que, na sua pequenez e insignificância, se encontrava completamente perdida no mapa de Moçambique, e para cúmulo sem motivos de atracão noturnos? Ora! Nada, ficar no quartel e deixar simplesmente rolar o tempo. Contudo, farejando pólvora no ar, o Silva, já com os cabeços a funcionar, encolheu os ombros meio indiferente e respondeu que nada. Então o Isuzu encheu o peito de ar, ajeitou os grandes óculos que descaiam segundo a segundo sobre o nariz, e colocando a mão no braço do Silva, disse impetuoso:
- Olha, queres alinhar comigo? Logo vou sair com duas garinas e tu ficavas com uma delas…
Dum sopetão o Silva saltou da cadeira. Os olhos arregalaram-se e o peito tremeu. Uma miúda? Real mesmo? Mas, prudente, teatralizou:
- Ó Isuzu, se precisas da minha ajuda eu alinho – respondeu meio indiferente, refreando o entusiasmo que o dominava. O Isuzu, alcunha proveniente da carrinha de caixa aberta que conduzia, embora pertença do pai, indiano fugido de Goa na década de sessenta, tinha nascido no Chibuto e era conhecedor, portanto, de todos os cantos e pessoas da cidade. Os pais tinham uma loja aberta ao público vendendo fazendas e tecidos importados da India. Então ficou combinado encontrarem-se ambos, ele e o Silva, na Confeitaria Chibuto, às 9 horas.
Mas quinze minutos antes da hora, não fosse o diabo antecipá-las, o Silva estava no local à espera, mas sempre desconfiando lá no íntimo que tudo aquilo mais não fosse que uma partidinha de carnaval… Às 9 menos cinco minutos o Isuzu chegou. Mesmo sem sair do carro chamou-o e o Silva entrou. Mas nada de garinas.
- Ó Isuzu, e as catraias?
- Calma, vamos agora buscá-las.
O Silva suspirou de alívio. Ah! bom, pensei fosse uma peta tua, foi confessando e rindo. O Isuzu correspondeu ao riso e garantiu que não, que iria apresentar-lhe uma mestiça de primeira, pele de ébano, dessas que vão rareando e que ele certeza absoluta não iria esquecer nunca mais. O soldado soltou uma gargalhada e de repente, por artes mágicas, rebentou-lhe na boca uma estranha nascente de água…   
Volvidos poucos minutos a carrinha parou de súbito, e o Silva viu, na esquina da rua, duas miúdas que, encostadas ao muro, esperavam ansiosas por alguém. Saíram ambos, e o Isuzu fez a apresentação.
- Silva, esta é a Sherazade.
O Silva tremeu, e a nascente sentida há instantes rebentou de vez espalhando pelo corpo todo um calor tórrido, infernal… Sem dúvida que o nome correspondia em absoluto à magia das mil e uma noites. Sherazade era linda, como que extraída do sonho, tinha um rosto de boneca e um corpo de criar desejos incessantes. Quando sorria parecia mesmo que as estrelas nasciam em sua boca e naquela boca de lábios redondos e formato de amora apetecia mergulhar e adormecer por tempos de mil e duas noites… A sofreguidão tomou conta dele, e quedou-se admirando em silêncio, estupefacto, aquela pérola.
- Silva, perdeste a língua?                                                                                                   
O Silva estava tonto. Suava. Que beleza, ia falando em solilóquio mas sem lucidez bastante para revelar em voz alta. E, ainda não refeito, apalermado, a frase saiu titubeante e mecânica:
- Muito prazer.
Como a carrinha era de caixa aberta na cabina só cabiam duas pessoas, e por esse facto o Silva e Sherazade tiveram de ir em cima segurando-se ao que podiam para não cair enquanto o Isuzu se escapulia da cidade em direção ao mato.
- Se eu cair tu seguras-me? – Havia uma mistura de ironia e curiosidade na voz dela, logo seguida de uma gargalhada suave enquanto olhava o Silva maliciosamente. Este, valentão, e também para medir o chão que pisava, passou-lhe a mão à volta da cintura e aproximando a boca à sua orelha, baixinho:
- Eu não te deixo cair, não quero te magoes…
Ela sorriu e aproximou-se mais dele. As mãos roçaram levemente. De súbito o Isuzu desviou a carrinha para fora da picada e alguns metros mais à frente parou de vez debaixo de uma árvore frondosa.
- Ficamos aqui, agora vejam lá o que fazem aí em cima! – e riu-se. Sany, a irmã de Sherazade, imitou-o, e o riso de ambos repercutiu-se mato além mas depressa abafado pelas bocas que se colaram. A lua brilhava redonda e bela dentro de um céu recheado de estrelas que faiscavam incessantemente. Por sorte, ou talvez por prevenção do indiano, havia no chão um pano grande desordenadamente enrolado, e que o Silva logo aproveitou para desdobrar e estendendo-o com um sorriso:
- Para ti, minha princesa.
Ela riu alto quase assustando o silêncio da noite. E a seguir enroscou-se nos braços dele.
Estava calor, extremamente quente. O Silva tirou a camisa, precisava de ar e de aspirar bem em sua memória, e no corpo também, o cheiro daquela mestiça tão deslumbrante. Para o Silva aquela seria a noite da sua vida!
O calor asfixiava cada vez mais. Em vez de uma brisa fresca, tão propícia àquele instante, provinha do mato, de todas as latitudes, fornadas de calores incontroláveis cada vez mais irrespiráveis. O peito do Silva estourava querendo rebentar mais mortífero que o canhão sem recuo…
Então de repente o Silva foi projetado para dentro de um vulcão. As lavas queimavam por completo sua pele, e a noite virou dia qual feitiço dos duendes da selva. As estrelas refulgiam no céu como nunca quais fadas madrinha todas vestidas de branco agitando suas varinhas, enquanto meteoros cruzavam os céus em provocações ininterruptas… E Sherazade, a sua Sherazade, tinha umas asas tão brancas tão brancas que quase cegava o feliz soldadinho. O corpo ardia, a alma suspirava em êxtase…
Naquela noite de Novembro, num cantinho qualquer do mato em Moçambique e debaixo de uma árvore frondosa, Sherazade tornou o Silva o homem mais feliz do mundo…

Paredes Coura, 06/10/2014
Alfredo Maioto

PS: Como esta estória vai ser lida por menores, o autor não descreve, como gostaria, a cena do êxtase do soldado Silva nos braços da sua Sherazade…
     

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