Memórias da Guerra Colonial
Por Alfredo Maioto
SHERAZADE
Abdul, mais conhecido
por Isuzu, aproximou-se e sentando-se desajeitadamente na cadeira perguntou,
ansioso:
- Ó Silva, que fazes
logo à noite?
A pergunta soou a
estupidez! Ora! Que poderia fazer um militar recém-chegado a uma cidade, que
por acaso se chamava Chibuto, mas que, na sua pequenez e insignificância, se
encontrava completamente perdida no mapa de Moçambique, e para cúmulo sem
motivos de atracão noturnos? Ora! Nada, ficar no quartel e deixar simplesmente
rolar o tempo. Contudo, farejando pólvora no ar, o Silva, já com os cabeços a funcionar,
encolheu os ombros meio indiferente e respondeu que nada. Então o Isuzu encheu
o peito de ar, ajeitou os grandes óculos que descaiam segundo a segundo sobre o
nariz, e colocando a mão no braço do Silva, disse impetuoso:
- Olha, queres alinhar
comigo? Logo vou sair com duas garinas e tu ficavas com uma delas…
Dum sopetão o Silva
saltou da cadeira. Os olhos arregalaram-se e o peito tremeu. Uma miúda? Real
mesmo? Mas, prudente, teatralizou:
- Ó Isuzu, se precisas
da minha ajuda eu alinho – respondeu meio indiferente, refreando o entusiasmo
que o dominava. O Isuzu, alcunha proveniente da carrinha de caixa aberta que
conduzia, embora pertença do pai, indiano fugido de Goa na década de sessenta, tinha
nascido no Chibuto e era conhecedor, portanto, de todos os cantos e pessoas da
cidade. Os pais tinham uma loja aberta ao público vendendo fazendas e tecidos
importados da India. Então ficou combinado encontrarem-se ambos, ele e o Silva,
na Confeitaria Chibuto, às 9 horas.
Mas quinze minutos
antes da hora, não fosse o diabo antecipá-las, o Silva estava no local à
espera, mas sempre desconfiando lá no íntimo que tudo aquilo mais não fosse que
uma partidinha de carnaval… Às 9 menos cinco minutos o Isuzu chegou. Mesmo sem
sair do carro chamou-o e o Silva entrou. Mas nada de garinas.
- Ó Isuzu, e as catraias?
- Calma, vamos agora
buscá-las.
O Silva suspirou de
alívio. Ah! bom, pensei fosse uma peta tua, foi confessando e rindo. O Isuzu correspondeu
ao riso e garantiu que não, que iria apresentar-lhe uma mestiça de primeira, pele
de ébano, dessas que vão rareando e que ele certeza absoluta não iria esquecer nunca
mais. O soldado soltou uma gargalhada e de repente, por artes mágicas, rebentou-lhe
na boca uma estranha nascente de água…
Volvidos poucos
minutos a carrinha parou de súbito, e o Silva viu, na esquina da rua, duas
miúdas que, encostadas ao muro, esperavam ansiosas por alguém. Saíram ambos, e
o Isuzu fez a apresentação.
- Silva, esta é a
Sherazade.
O Silva tremeu, e a
nascente sentida há instantes rebentou de vez espalhando pelo corpo todo um
calor tórrido, infernal… Sem dúvida que o nome correspondia em absoluto à magia
das mil e uma noites. Sherazade era linda, como que extraída do sonho, tinha um
rosto de boneca e um corpo de criar desejos incessantes. Quando sorria parecia
mesmo que as estrelas nasciam em sua boca e naquela boca de lábios redondos e
formato de amora apetecia mergulhar e adormecer por tempos de mil e duas noites…
A sofreguidão tomou conta dele, e quedou-se admirando em silêncio, estupefacto,
aquela pérola.
- Silva, perdeste a língua?
O Silva estava tonto. Suava.
Que beleza, ia falando em solilóquio mas sem lucidez bastante para revelar em
voz alta. E, ainda não refeito, apalermado, a frase saiu titubeante e mecânica:
- Muito prazer.
Como a carrinha era de
caixa aberta na cabina só cabiam duas pessoas, e por esse facto o Silva e
Sherazade tiveram de ir em cima segurando-se ao que podiam para não cair enquanto
o Isuzu se escapulia da cidade em direção ao mato.
- Se eu cair tu
seguras-me? – Havia uma mistura de ironia e curiosidade na voz dela, logo
seguida de uma gargalhada suave enquanto olhava o Silva maliciosamente. Este,
valentão, e também para medir o chão que pisava, passou-lhe a mão à volta da
cintura e aproximando a boca à sua orelha, baixinho:
- Eu não te deixo
cair, não quero te magoes…
Ela sorriu e
aproximou-se mais dele. As mãos roçaram levemente. De súbito o Isuzu desviou a
carrinha para fora da picada e alguns metros mais à frente parou de vez debaixo
de uma árvore frondosa.
- Ficamos aqui, agora
vejam lá o que fazem aí em cima! – e riu-se. Sany, a irmã de Sherazade,
imitou-o, e o riso de ambos repercutiu-se mato além mas depressa abafado pelas
bocas que se colaram. A lua brilhava redonda e bela dentro de um céu recheado
de estrelas que faiscavam incessantemente. Por sorte, ou talvez por prevenção
do indiano, havia no chão um pano grande desordenadamente enrolado, e que o
Silva logo aproveitou para desdobrar e estendendo-o com um sorriso:
- Para ti, minha princesa.
Ela riu alto quase
assustando o silêncio da noite. E a seguir enroscou-se nos braços dele.
Estava calor,
extremamente quente. O Silva tirou a camisa, precisava de ar e de aspirar bem
em sua memória, e no corpo também, o cheiro daquela mestiça tão deslumbrante.
Para o Silva aquela seria a noite da sua vida!
O calor asfixiava cada
vez mais. Em vez de uma brisa fresca, tão propícia àquele instante, provinha do
mato, de todas as latitudes, fornadas de calores incontroláveis cada vez mais
irrespiráveis. O peito do Silva estourava querendo rebentar mais mortífero que
o canhão sem recuo…
Então de repente o
Silva foi projetado para dentro de um vulcão. As lavas queimavam por completo
sua pele, e a noite virou dia qual feitiço dos duendes da selva. As estrelas
refulgiam no céu como nunca quais fadas madrinha todas vestidas de branco
agitando suas varinhas, enquanto meteoros cruzavam os céus em provocações
ininterruptas… E Sherazade, a sua Sherazade, tinha umas asas tão brancas tão
brancas que quase cegava o feliz soldadinho. O corpo ardia, a alma suspirava em
êxtase…
Naquela noite de
Novembro, num cantinho qualquer do mato em Moçambique e debaixo de uma árvore
frondosa, Sherazade tornou o Silva o homem mais feliz do mundo…
Paredes Coura, 06/10/2014
Alfredo Maioto
PS: Como esta estória
vai ser lida por menores, o autor não descreve, como gostaria, a cena do êxtase
do soldado Silva nos braços da sua Sherazade…
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