2015/03/04

Memórias da Guerra Colonial / Alfredo Maioto


ALMA CANSADA

- Estou farto desta porcaria. Não aguento mais. Não aguento, pá, não dá! Quero ir embora para casa e esquecer esta merda toda. A minha cabeça, às vezes, parece que vai rebentar com o mesmo estrondo provocado por um canhão sem recuo, aquele pum! Duro e frio sistematicamente ecoando nela como um mal a que não consigo fugir. Porra! Estou farto, pá! Quero sumir, quero morrer, não aguento mais. Vou confessar-te uma coisa, Maciel: durante o dia, como o tempo fica preenchido, ainda vai; mas à noite, quando me deito, debaixo dos cobertores, precisamente quando fico sozinho com a minha solidão e meus pensamentos, então aí tudo vira um inferno! Há duas semanas, em patrulha no mato, olhava o céu estrelado sem conseguir adormecer. De repente levantei-me e ia embrenhar-me no mato quando o Castro, que estava de sentinela, me interceptou:
- Ó Freitas, onde vais? 
Eu ia embora, sem destino, mato adentro. Simplesmente ia embora… Vês como ando? O Castro é que foi um gajo porreiro, segurou-me pelo braço e convenceu-me a deitar-me de novo. Falou de minha família, que meus pais esperavam por mim, essas tretas todas, sabes como é.
- Tem calma, pá. As coisas mudam…
- Calma como? E quando vão mudar? Nunca! A nossa guerra vai ser sempre esta porcaria até ao fim, teremos de viver sempre neste stress diário, no corpo e na mente bem impressas aquelas palavras que enchem nosso corpo e mente todo tempo: minas, emboscadas, colunas, patrulhas! E a ladainha vai-se repetindo. Não conseguimos deixar de pronunciá-las a todos os instantes, todos. Vai ser sempre assim! Olha, deixa que confesse uma coisa: não tenho medo de morrer. Não tenho, não. Acredito que vou regressar são e salvo a casa. E olha que não fiz promessa alguma a Nossa Senhora de ir a Fátima a pé, como a maioria fez. Não perguntes porquê, mas sei que vou regressar direitinho. Acho que isso de fazer promessas é o mesmo que fazer chantagem com Ela, como um negócio: se eu regressar são e salvo eu prometo ir a Fátima e, para a penitência ser maior, até vou a pé! Entendes? Minha fé é enorme, acredito piamente que vou regressar a casa sem mazelas e não como o nosso cabo Tavares que há 3 meses rebentou, coitado, uma mina e teve de regressar ao “Puto” mais cedo. Ou então, mais trágico, como o nosso Capitão que em Setembro morreu no rebentamento doutra mina, juntamente com o Capitão dos Comandos, quando seguiam ambos no jeep. O Travassos, que levou dois tiros vindos do nada na cabeça, numa emboscada…
- É triste, mas isso pode acontecer a qualquer um de nós.
- Tens razão, Maciel, eu sei, eu sei. Confesso que morrer não me assusta. Sabes o que realmente me assusta e dá cabo da cabeça fazendo-a rodopiar com um verylight? A monotonia! É esta incerteza toda, esta monotonia do nosso dia a dia, esta repetição sistemática das mesmas coisas, enfadonha, monocórdica. Depois o cenário, sempre o mesmo, os mesmos rostos, o mesmo ritmo. Para cúmulo esta incerteza que sentimos pelo segundo que vem a seguir. Isto a mim deixa-me sem ar! É esta angústia terrível que me mata a cada dia que passa e me definha inevitavelmente. Isto é guerra, não podemos decidir nosso destino, mas prefiro morrer a ficar numa cadeira de rodas, sabes? Diminuído, incapacitado e dependente de terceiros. Olha bem a nossa sorte: os estupores dos turras sabem a que horas passamos na picada, conhecem bem o nosso trajeto, podem planear o ataque como mais lhes apetecer, por isso é de prever mais ataques e com consequências fatídicas, como já sucedeu. Somos cordeiros a caminho do matadouro… Só não entendo como não temos mais vítimas.
- Sorte, ou o facto de termos chegado a Lourenço Marques no dia 12 Maio e termos a mão de Nossa Senhora de Fátima a proteger-nos, quem sabe?
- Sim, quem sabe? Também acho, e muita gente pensa igual. Vês aqueles 4 morros acolá em frente olhando, silenciosos e ameaçadores, para o quartel, para todos nós? Quase os imagino com suas garras a tentar dar cabo de nós. Detesto-os! Queria aniquilá-los, pá! Toda vez que olho para eles penso: e se os turras nos atacarem? Para onde iremos fugir, quando o que nos cerca é um terreno vasto e desarborizado? Como resistir? Esconder-nos nas trincheiras? Achas que chega?
- Não, não chega.
- Bom, melhor nem pensar, porque se isso acontecesse seria uma tragédia. Na cama tenho tempo para todo género de pensamentos, sabes, Maciel? Varrem-me a cabeça desenfreadamente assenhoreando-se dela como tirano implacável. E é nessas alturas, de noite, no escuro, quando mais penso na minha família e em tudo que deixei na Metrópole. E sinto então, de repente, que a distância é incomensurável e não consigo anulá-la nunca… Então invade-me uma tristeza sem fim, negra como a própria África, negra como todos os habitantes da aldeia onde estamos aquartelados. Nesses momentos o corpo fica tenso, impotente, e minha alma sofre. Sofre dores e revoltas! Já por diversas vezes chorei, mas baixinho, para ninguém ouvir, para depois não gozarem comigo e chamarem-me choramingas!
- Não é vergonha nenhuma, pá. Também já chorei, porra.
- Já? Dizes isso talvez para me animar, mas acredita que é uma dor do caraças! É funda, vem lá do âmago de mim mesmo, incontida, violenta. Quero ir embora, esta guerra não é minha, não me pertence, pá.
- E a mim, achas que pertence?
- Não, claro que não. Mas acho que minha cabeça não vai aguentar muito mais tempo. Só passaram 15 meses sempre debaixo deste stress diário e inevitável. E ainda faltam 9 eternos meses para o fim da comissão! Não vou aguentar, não vou, não consigo. É este assobio que existe em meus ouvidos sem cessar, ininterrupto, depois ainda esta falta de ar que se apodera de mim e me deixa numa ansiedade incontrolável, como se um fantasma invisível e malévolo me espetasse as unhas na garganta. Quero respirar e mal consigo.
- Amanhã vou contigo ao médico.
- Obrigado, pá, mas não sei o que ele pode medicar-me para varrer da alma esta solidão desesperante. Sinto-me suspenso sobre o abismo… Só falta o empurrão e caio lá no fundo de vez!
- Olha, e se fôssemos beber umas cervejas para desanuviar? Que tal? E depois já sabes que estou sempre aqui.
- Eu sei, obrigado. És um gajo impecável, um amigo a valer. Sim, vamos beber umas Manicas, talvez umas cervejas geladas consigam afogar este cansaço que me asfixia. Preciso recuperar meu ser, pá!

Alfredo Maioto

Paredes Coura, 06/02/2015

4 comentários:

Anónimo disse...

Livra, ainda bem que não estive lá
Joca

Anónimo disse...

Mais uma vez o amigo do sr. Vitalino nos brinda com discrição quase real do não deveria ter acontecido.
Felizmente ainda há quem não deixe cair no esquecimento tamanha crueldade que foi imposta aos nossos jovens da altura.
Parabéns sr. Alfredo Maioto

Carlos M. Martins

José Cerdeiral disse...

Camaradas, só quem por lá não passou pode duvidar desta realidade.
Li com atenção esta narrativa do camarada
Maioto, e só me apraz dizer, que em muito se parece com a realidade do sofrimento de tantos jovens, que por aquelas terras passaram na sua juventude, sofrimento esse que perdura na cabeça de muitos, até aos dias de hoje.
Parabéns camarada amigo Maioto por mais esta narrativa,sobre os nossos tempos de meninos.
Um abraço cá do Zé

Anónimo disse...

Infelizmente muito há para contar sobre o assunto, mas infelizmente ainda há muito "boa" gente por qualquer motivo olha-nos com repulsa e desdém. Graças ao sr. Maioto os nossos sentimentos escondidos saem cá para fora. Oxalá mais houvesse com facilidade para exprimir as nossas mágoas. Muito bom gostei.
João Zé - P.Maçãs