ALMA CANSADA
- Estou farto desta porcaria. Não aguento mais.
Não aguento, pá, não dá! Quero ir embora para casa e esquecer esta merda toda.
A minha cabeça, às vezes, parece que vai rebentar com o mesmo estrondo
provocado por um canhão sem recuo, aquele pum! Duro e frio sistematicamente
ecoando nela como um mal a que não consigo fugir. Porra! Estou farto, pá! Quero
sumir, quero morrer, não aguento mais. Vou confessar-te uma coisa, Maciel:
durante o dia, como o tempo fica preenchido, ainda vai; mas à noite, quando me
deito, debaixo dos cobertores, precisamente quando fico sozinho com a minha
solidão e meus pensamentos, então aí tudo vira um inferno! Há duas semanas, em
patrulha no mato, olhava o céu estrelado sem conseguir adormecer. De repente
levantei-me e ia embrenhar-me no mato quando o Castro, que estava de sentinela,
me interceptou:
- Ó Freitas, onde vais?
Eu ia embora, sem destino, mato adentro.
Simplesmente ia embora… Vês como ando? O Castro é que foi um gajo porreiro,
segurou-me pelo braço e convenceu-me a deitar-me de novo. Falou de minha
família, que meus pais esperavam por mim, essas tretas todas, sabes como é.
- Tem calma, pá. As coisas mudam…
- Calma como? E quando vão mudar? Nunca! A nossa
guerra vai ser sempre esta porcaria até ao fim, teremos de viver sempre neste
stress diário, no corpo e na mente bem impressas aquelas palavras que enchem
nosso corpo e mente todo tempo: minas, emboscadas, colunas, patrulhas! E a
ladainha vai-se repetindo. Não conseguimos deixar de pronunciá-las a todos os
instantes, todos. Vai ser sempre assim! Olha, deixa que confesse uma coisa: não
tenho medo de morrer. Não tenho, não. Acredito que vou regressar são e salvo a
casa. E olha que não fiz promessa alguma a Nossa Senhora de ir a Fátima a pé,
como a maioria fez. Não perguntes porquê, mas sei que vou regressar direitinho.
Acho que isso de fazer promessas é o mesmo que fazer chantagem com Ela, como um
negócio: se eu regressar são e salvo eu prometo ir a Fátima e, para a penitência
ser maior, até vou a pé! Entendes? Minha fé é enorme, acredito piamente que vou
regressar a casa sem mazelas e não como o nosso cabo Tavares que há 3 meses
rebentou, coitado, uma mina e teve de regressar ao “Puto” mais cedo. Ou então,
mais trágico, como o nosso Capitão que em Setembro morreu no rebentamento
doutra mina, juntamente com o Capitão dos Comandos, quando seguiam ambos no
jeep. O Travassos, que levou dois tiros vindos do nada na cabeça, numa
emboscada…
- É triste, mas isso pode acontecer a qualquer um
de nós.
- Tens razão, Maciel, eu sei, eu sei. Confesso que
morrer não me assusta. Sabes o que realmente me assusta e dá cabo da cabeça
fazendo-a rodopiar com um verylight? A monotonia! É esta incerteza toda, esta
monotonia do nosso dia a dia, esta repetição sistemática das mesmas coisas,
enfadonha, monocórdica. Depois o cenário, sempre o mesmo, os mesmos rostos, o
mesmo ritmo. Para cúmulo esta incerteza que sentimos pelo segundo que vem a
seguir. Isto a mim deixa-me sem ar! É esta angústia terrível que me mata a cada
dia que passa e me definha inevitavelmente. Isto é guerra, não podemos decidir
nosso destino, mas prefiro morrer a ficar numa cadeira de rodas, sabes? Diminuído,
incapacitado e dependente de terceiros. Olha bem a nossa sorte: os estupores
dos turras sabem a que horas passamos na picada, conhecem bem o nosso trajeto,
podem planear o ataque como mais lhes apetecer, por isso é de prever mais
ataques e com consequências fatídicas, como já sucedeu. Somos cordeiros a
caminho do matadouro… Só não entendo como não temos mais vítimas.
- Sorte, ou o facto de termos chegado a Lourenço
Marques no dia 12 Maio e termos a mão de Nossa Senhora de Fátima a
proteger-nos, quem sabe?
- Sim, quem sabe? Também acho, e muita gente pensa
igual. Vês aqueles 4 morros acolá em frente olhando, silenciosos e ameaçadores,
para o quartel, para todos nós? Quase os imagino com suas garras a tentar dar
cabo de nós. Detesto-os! Queria aniquilá-los, pá! Toda vez que olho para eles
penso: e se os turras nos atacarem? Para onde iremos fugir, quando o que nos
cerca é um terreno vasto e desarborizado? Como resistir? Esconder-nos nas
trincheiras? Achas que chega?
- Não, não chega.
- Bom, melhor nem pensar, porque se isso
acontecesse seria uma tragédia. Na cama tenho tempo para todo género de
pensamentos, sabes, Maciel? Varrem-me a cabeça desenfreadamente
assenhoreando-se dela como tirano implacável. E é nessas alturas, de noite, no
escuro, quando mais penso na minha família e em tudo que deixei na Metrópole. E
sinto então, de repente, que a distância é incomensurável e não consigo
anulá-la nunca… Então invade-me uma tristeza sem fim, negra como a própria
África, negra como todos os habitantes da aldeia onde estamos aquartelados. Nesses
momentos o corpo fica tenso, impotente, e minha alma sofre. Sofre dores e
revoltas! Já por diversas vezes chorei, mas baixinho, para ninguém ouvir, para
depois não gozarem comigo e chamarem-me choramingas!
- Não é vergonha nenhuma, pá. Também já chorei,
porra.
- Já? Dizes isso talvez para me animar, mas
acredita que é uma dor do caraças! É funda, vem lá do âmago de mim mesmo,
incontida, violenta. Quero ir embora, esta guerra não é minha, não me pertence,
pá.
- E a mim, achas que pertence?
- Não, claro que não. Mas acho que minha cabeça
não vai aguentar muito mais tempo. Só passaram 15 meses sempre debaixo deste
stress diário e inevitável. E ainda faltam 9 eternos meses para o fim da
comissão! Não vou aguentar, não vou, não consigo. É este assobio que existe em
meus ouvidos sem cessar, ininterrupto, depois ainda esta falta de ar que se
apodera de mim e me deixa numa ansiedade incontrolável, como se um fantasma
invisível e malévolo me espetasse as unhas na garganta. Quero respirar e mal
consigo.
- Amanhã vou contigo ao médico.
- Obrigado, pá, mas não sei o que ele pode
medicar-me para varrer da alma esta solidão desesperante. Sinto-me suspenso
sobre o abismo… Só falta o empurrão e caio lá no fundo de vez!
- Olha, e se fôssemos beber umas cervejas para
desanuviar? Que tal? E depois já sabes que estou sempre aqui.
- Eu sei, obrigado. És um gajo impecável, um amigo
a valer. Sim, vamos beber umas Manicas, talvez umas cervejas geladas consigam
afogar este cansaço que me asfixia. Preciso recuperar meu
ser, pá!
Alfredo Maioto
Paredes Coura, 06/02/2015
4 comentários:
Livra, ainda bem que não estive lá
Joca
Mais uma vez o amigo do sr. Vitalino nos brinda com discrição quase real do não deveria ter acontecido.
Felizmente ainda há quem não deixe cair no esquecimento tamanha crueldade que foi imposta aos nossos jovens da altura.
Parabéns sr. Alfredo Maioto
Carlos M. Martins
Camaradas, só quem por lá não passou pode duvidar desta realidade.
Li com atenção esta narrativa do camarada
Maioto, e só me apraz dizer, que em muito se parece com a realidade do sofrimento de tantos jovens, que por aquelas terras passaram na sua juventude, sofrimento esse que perdura na cabeça de muitos, até aos dias de hoje.
Parabéns camarada amigo Maioto por mais esta narrativa,sobre os nossos tempos de meninos.
Um abraço cá do Zé
Infelizmente muito há para contar sobre o assunto, mas infelizmente ainda há muito "boa" gente por qualquer motivo olha-nos com repulsa e desdém. Graças ao sr. Maioto os nossos sentimentos escondidos saem cá para fora. Oxalá mais houvesse com facilidade para exprimir as nossas mágoas. Muito bom gostei.
João Zé - P.Maçãs
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