Faz hoje 43 anos que o Niassa partiu de Lisboa
rumo a Moçambique.
A bordo seguia o Batalhão 3848, composto por 4
companhias das quais a 3352 da qual eu fazia parte. Foram 2 anos de Sangue Suor
e Lágrima (como se dizia na altura). Mas o que apertava mais o coração era a
Saudade; Saudade da terra, da família, dos amigos e de tudo o que tinha ficado
para trás.
Em todos nós, agora nascia a esperança de um dia
voltar são e salvo.
O Maioto ao longo da Existência desde Blog, tem contribuído
(com a sua “Magia”) para que todo o nosso sofrimento não caia no esquecimento.
É dele este magnifico escrito.
A PROMESSA
Porto,
16 Abril de 2014.
Meu
caro amigo Rui,
Dentro
de 5 dias, precisamente no dia 21 de Abril, vão completar-se 43 anos que
deixámos Lisboa para irmos cumprir a nossa comissão em Moçambique. A guerra das
colónias, o flagelo da nossa geração! Tanto tempo passado! Saberás tu, meu
amigo, explicar-me como é possível que a memória se esqueça de tanta coisa mas
mantenha outras tão nítidas como se tivessem sido vividas ontem? Eu não sei a
resposta, só sei tão simplesmente que a partida do cais de Alcântara, naquela
manhã 21 de Abril, se mantém tão viva em mim que às vezes, sem me dar conta,
dou comigo a repassar tudo como se dum filme se tratasse… Mal te conhecia até
então, embora fizesses parte da minha Companhia, mas por alguma ironia da vida
nesse momento fatídico da partida estavas a meu lado, e apontando a multidão
que loucamente gritava no cais tu exclamaste:
-
Que loucura! Difícil por demais partir, não achas?
Acenei
que sim. Distintos e ensurdecedores chegavam-nos os gritos das pessoas que do
cais nos acenavam sem cessar, soltando nomes e agitando bandeiras ou lenços
coloridos num sinal previamente combinado para mais fácil localização. Lembro
uma enorme bandeira do Benfica a esvoaçar ao vento freneticamente, enquanto a
seu lado um cartaz pintado a letras pretas e toscas apenas dizia: MEU FILHO,
VOLTA!
Apontaste
o cartaz e abanaste a cabeça. E saíste apressado da minha beira tentando
esconder uma lágrima que estava prestes a soltar-se. Mas os brados e acenos das
pessoas foram diminuindo de intensidade à medida que o barco “Niassa “entrava
Tejo adentro em direção ao mar. E Lisboa ficou para trás de vez e com ela
também a multidão que foi a Alcantara despedir-se de nós…
Em
mim uma dor intensa que me varria as entranhas. Encontrei-te mais tarde sozinho
e perdido em monólogos fundos num canto do barco, muito longe eu de imaginar que
teria de ouvir muitos, e muitas vezes também, esses teus monólogos repartidos
entre a beleza das palavras e a revolta da saudade… Aproximei-me.
-
Acho que precisamos ambos de beber umas cervejas. Aceitas?
E
do meu gesto simples brotou a nossa amizade. Em Changara, naquele cantinho
húmido de Tete, onde às vezes os 43 graus à sombra quase nos asfixiava, vivemos
emoções muito fortes com a nossa guerra. Tivemos conversas longas na noite,
chorámos saudades de casa, e muitas vezes nos interrogámos sobre o significado
da guerra que tivemos de enfrentar. Tu pertencias ao 3º Pelotão, eu ao 4º, mas
nada impediu de cimentarmos uma amizade que ainda hoje, 43 anos depois, se
mantém viva, apesar de tu viveres em Lisboa e eu no Porto. A amizade não tem
barreiras. De há um ano para cá, porém, queixavas-te frequentemente de dores de
cabeça. Toda vez que falávamos ao telefone eu insistia para ires ao médico, e
tu argumentavas que tudo havia de passar, e desmazelaste-te… Mas sabias dizer-me
que com a saúde a gente não brinca! Mas tu facilitaste. E em Julho do ano
passado, num dia lindo de praia, inesperadamente tua mulher Helena telefonou-me
a dizer que ias ser operado a um tumor na cabeça. Tudo muito rápido. Mas tu
nunca me falaste nada! E três meses depois, no dia 7 de Outubro, tu partiste…
Como
falar-te das lágrimas que chorei por ti? E como vou dizer-te que sinto saudades
tuas a todos os instantes, muitas, imensas? Como vou dizer-te que sinto falta
de nossas conversas, de nossas risadas, do reavivar de nossas memórias, do teu
sentido de humor tão bem apurado?
No
dia de teu 23º aniversário, ainda em Changara, quando a malta se divertia
cantando e bebendo umas Manicas geladas na cantina do Fragoso, de repente
puseste a mão no meu braço e arrastando-me até a um canto, no rosto estampada
uma seriedade nunca vista, disseste:
-
Vais prometer-me uma coisa.
-
Diz
Perfuraste
meu ser com a perspicácia e determinação de teu olhar, sempre curioso e
inteligente, e teus olhos fixos nos meus convictos balbuciaste:
-Quero
que jures que todos os anos, no dia 21 Abril, estivermos onde estivermos, e até
morrer, nós vamos nos falar neste dia. Promete.
Pediste
uma faca ao cantineiro na disposição de misturar nosso sangue, para, dessa
forma, selarmos nossa jura, mas consegui, embora com dificuldade, demover-te de
tal intento. E a verdade é que nestes 43 anos temos mantido a promessa… A
promessa e a Amizade!
Só
que este ano tudo é diferente. Este ano, pela primeira vez em tantos, não vou
poder ouvir tua voz alegre e bem timbrada, nem sentir o teu humor do outro lado
da linha, nem tão-pouco a tua risada fácil e penetrante. Este ano, no dia 21
mais triste de todos os dias, irei chorar lágrimas que irão brotar da alma e da
saudade… E meu ser vestir-se-á de luto por ti! Tu não podes, mas eu levarei
minha promessa té ao fim. Quero faze-lo por nós ambos, ciente de que me irás
ler seja de que jeito for…
Prometo,
até não mais poder, continuar a escreverei o dia 21 de Abril como o marco de
nossas vidas…
Até
logo, meu amigo!
Alfredo
Maioto
Porto,
20/04/2014
4 comentários:
Aos autores, como interveniente o meu agradecimento por não deixarem esquecer uma geração de gentes excecionais de um pequeno país em três frentes de guerra contra o mundo, que complexados de direita e esquerda tudo tem feito para nos esquecer.
Muito bem amigo Vitalino, parabéns para si e para o seu amigo por não deixarem cair no esquecimento um acontecimento que marcou toda uma geração.
João Paulo
Enquanto houver pessoas como o Sr. Vitalino e o Sr. Maioto podem ficar descansados que de certeza que não cai no esquecimento.
Não sou desse tempo, mas pelo que sei e que diz a história foi um sacrifício injusto e inútil, para milhares de jovens da altura.
João josé
Enviar um comentário