2006/04/21

A PARTIDA

Decorria o Ano da Graça do Senhor de 1971, o dia 21 de Abril tinha amanhecido lindo com um sol radioso como a querer despedir-se de nós. Por entre choros e gritos que se ouviam vindos do cais de Conde de Óbidos, lá estavam no velho Niassa apinhados como sardinhas em lata, umas largas centenas de jovens com destino a Moçambique. Entre eles estava eu, lembro-me do pensamento que tive como se fosse hoje; Será que eu algum dia vou voltar a esta terra que eu tanto amo!?. Depois vieram os pensamentos da família, dos amigos e de tudo de bom quer era deixado para trás. Mas de entre tudo que me vinha à memória o que me incomodava mais eram as últimas palavras de minha mãe; Que mal fiz eu a Deus para merecer um castigo assim!... quando da partida do teu irmão Joaquim para a Guiné, chorei lágrimas de sangue, depois foi a partida do teu irmão Hernani para Angola, agora tu meu filho sinto que não tenho mais forças para chorar, apenas sinto meu coração despedaçado de tanta dor e revolta, até parece maldição. Felizmente que a dita maldição terminou comigo. Passados dois anos e alguns meses, fui um daqueles que tive a sorte de regressar, porque muitos por lá tombaram numa guerra que não era nossa. Mas outra luta começava agora tão penosa como a que ficara para trás, a da recuperação dos traumas que por lá se viveram. Eu, no meu silencio enterrei ou penso ter enterrado os meus medos e os meus fantasmas de uma guerra cruel e desumana, o que muitos não conseguiram, esperando por uma ajuda que nunca chegou. Mas no meio de tanto desespero dor e saudade há sempre alguém que tem um momento de inspiração e assim conseguir com que o coração fale mais alto. O Alfredo Maioto, era o exemplo disso, bom colega sempre com uma palavra de conforto e amiga. São dele estas belas palavras que tanto significado têm para quem viveu esse flagelo da Guerra Colonial.
V.Cara D'Anjo
Changara
Conheci África
na tarde cor da manga
e logo seu cheiro mágico e inebriante,
se entranhou para sempre no sangue
qual Picada da Mosca do Sono...
E escrevi Changara em todos os poros
do meu corpo
com letras enormes
da cor da dor
e escritas em páginas
de todos os tamanhos e tons!

Foi um tempo sem idade,
quando os sonhos não tinham fronteiras,
as linhas tinham a força de parágrafos
e as palavras brilhavam nos olhos.
Foi um tempo em que amei a paixão
e me apaxonei pelo amor!

E em Changara li
emoções sem limite,
preenchendo folhas e folhas
dum tempo sem nome...

Mandaram-me calar, em idade tão terna,
todos os sonhos
há muito escritos na alma,
e ordenaram que lesse
poemas cor de poeira,
versos de picadas sem rima,
sons de selva e capim
e medos de armas e morteiros...
Nunca obedeci
mas tornei-me
um menino-soldado infeliz.

Mas um dia, na noite mais noite,
sem estrelas nem luar,
criaram a guerra!.
Então, misteriosamente, vindo não sei de donde,
rebentou em mim um personagem novo.
Tranformei-me.
E o soldado-menino
envelheceu no soldado-homem
sem esperanças nem futuros...

Aprendi a desconfiar de cada árvore calada,
aprendi a olhar cada segundo
como o último a ser respirado,
e que o centimetro seguinte da picada
em nada me pertencia.
E meu fervor gelou
no calor húmido de todos os dias!

Comecei a morrer mais depressa
ao ver sorrisos amigos
sumidos na traição das kalashnikovsou
no troar das ninas!

Então matei sem matar!
E assim, entre ranger de dentes
e gritos de raivas e revoltas,
tremente o peito
e latejante o sangue,
assassinei turras sem nome nem rosto
sangue de fúria racista
correndo-lhes corpo além!

E em brados mais ferozes
que o rio Zambeze,
praguejei palavrões arrancados
não sei de que recanto do meu ser,
cínica e cheia de insónias
a alma!

E, insensível, a todos metralhei.
E, embrutecido,
a todos bazuquei em tiros de indiferenças
e cansaços,
nas mãos a arma mais escura
que o arrepio!

Mas á noite, no mato,
fitando as estrelas,
bem enrolado no poncho frio,
voltava a possuir a parte autêntica
do meu respirar,
e os meus sonhos, intensos e firmes,
como um murmúrio
voltavam a correr em mim,
e eu voltava a acreditar...
E, simples e coloridas,
deslizavam lágrimas capim
adentro...
E eu pensava . E sentia.
E pensava, sentindo,
os rostos magros assentes
em olhos famintos.

E sentia, pensando,
corpos de roupas esfarrapadas
e tresandando a catinga,
dentes podres do nada,
machado ao ombro, passo descalço,
as mãos cheias de calos
e cheirando a machamba...

Meu corpo desenrugava-se
e minha alma emudecia...

E numa manhã de sol,
quando, meiga, amadurecia a papaia,
e as águas do Luenha corriam mansas,
descobri que matara esperanças
da mesma cor
que minhas próprias ilusões!...
A.Maio

10 comentários:

Anónimo disse...

Felizmente que nunca tive ninguem na familia nessas condições.
Eu como mãe que sou se vivesse uma situação como a que é descrita mão sei se aguentaria tanta dor. Três filhos pelo que entendi seguidos para uma guerra deve deixar sequelas dificeis de sarar.Tenho ouvido algumas histórias da guerra do ultramar, mas esta parece mesmo castigo. Não desejo a minguem o sofrimento que essa Mãe deve ter passado.

Anónimo disse...

Senhor V.Cara D'Anjo.
Mesmo sem o conhecer já tinha alguma simpatia por si pela forma simples como aborda o problemas e com uma linguagem que todos entendem. Tambem a forma como os seus colaboradores se exprimem, de uma forma critica mas correta. Hoje tem nota 10 pela forma com que trouxe um problema á baila que muitos tentam encobrir envergonhados mas que tantas culpas tiveram, a "Guerra Colonial", já para não falar na maior vergonha que foi a descolonização.
Parabens, o Senhor me fez lembrar com carinho alguem que me era bastante querido que tinha tristes recordações desse Guerra sem sentido.

Anónimo disse...

Tenho um tio que tinha um irmão que morreui na Guiné, segundo dizia a sua mãe nunca ninguem chegou a saber ao certo o que aconteceu, apenas lhe disseram que tinha morrido em combate. Mas uma coisa é certa a mãe nunca mais foi a mesma pessoa, ao ponto de perder a vontado de viver. Dizia que o seu maior desgosto era nunca ter visto o corpo do seu filho mesmo sem vida.

Anónimo disse...

Por mais pena que tenha de quem lá ficou, acho que deviam olhar mais para quem voltou, com traumas físicos ou psicológicos, e quem perdeu filhos, marido, etc. Até hoje, e passados tantos anos, ainda há quem sofra as consquências daquela guerra estúpida. E o pior, quanto a mim, são os que sofrem em silêncio, por não haver apoios suficientes ou por vergonha, agonizando numa culpa que não lhes pertence.
Susana

Anónimo disse...

Será que a guerra do Ultramar foi assim tão má?
O Senhor que escreveu isto devia contar algumas historiazinhas, ou será que isso não passou apenas de um tabú.

Anónimo disse...

O senhor que pergunta em tom de gozo, se a guerra do Ultramar foi assim tão má, não deve ter passado por lá. Se passou, se calhar foi daqueles que se encheu de dinheiro.
Ou será que tem filhos e talvez gostasse que fossem para aquela ou para outra guerra, que soubesse em que condições físicas partiam e não soubesse como voltavam.
Cale-se ! Pense nos milhares que regressaram num caixão ou estropiados ou psiquicamente diminuídos. Foi bom, não foi?

Anónimo disse...

Me perdoem a minha linguagem menos própria, uma vez que este blog tem sido algo de bom e honesto.Mas perante uma afirmação tão grave sobre a Guerra de África de forma alguma poderia ficar calado.
O Senhor anómimo que veio para aqui com desdém ou é um desses Rapazolas inconsciemte como tantos que vivem por aí que vivem ás custas do pais como prazitas,que nunca olharam para a história nem leram um livro (Saberá ler ao menos?), ou alguem que veio com esta brincadeira de mau gosto, ou alguém que quer tourada, a esse eu aconselho que procure os da sua laia, ou como se disse e muito bem no comentário anterior, poderá ser um desses senhores que passaram todo o tempo sentados a trás de uma secretária, enchendo os bolsos à custa do pobres soltados que passavam meses e meses no mato onde havia carências de tudo menos de horrores. Será possível que ainda passados estes anos todos, ainda haja alguém que queira tapar o sol com a peneira. Nas décadas de 60/70, infelizmente não houve quase nenhuma familia Portuguesa que não passase por esse terrível sentimo de angustia. Por isso peço que haja um pouco mais de respeito não só por aqueles que viveram essa terrível experiencia, como por aqueles que perderam os seus familiares.

Anónimo disse...

Muito bem, sr.José Castro! O que muita gente se esqueçe ou finge esquecer (como esse sr.anónimo) é que todas as guerras têm e sempre tiveram 2 tipos de intervenientes. Aqueles que lutam nelas (normalmente voluntários à força)e aqueles que ganham com elas (que não saiem da sua casinha e que quanto mais tempo durar,melhor). Se assim não fosse, hoje não haveria mais guerras. Mas então e os interesses...?
Isabel Roma

Anónimo disse...

Essa guerra foi feita para defender populações portuguesas (brancas e negras, pois a maioria dos negros queriam continuar portiugueses) de bandos de guerrilheiros armados pró-russos, pró-chineses e pró-americanos, potências q queriam explorar as riquezas dos nossos territórios ultramarinos. Pelo menos enquanto fizeram parte de Portugal, Angola e Moçambique eram auto-suficientes e havia escolas de pé. Hoje só há miséria. Os russos encheram-se com os diamantes, os americanos com o petróleo, etc. Tenho pena de quem lá morreu, mas morreu por uma guerra justa e foi traído por quem entregou aquilo da maneira que entregou. Tudo o resto é propaganda comunista.
Ass: Paulo Rodrigues, Banzão

Anónimo disse...

Este Sr. Paulo Rodrigues, cheira a naftalina !
Quer ele dizer que todos os países, que tinham colónias em África, na Ásia, nas Américas e que deram a independência muito antes de nós são idiotas, porque os espertos somos nós os portugueses, que ainda hoje devíamos manter as colónias a todo o custo. Só é discutível o modo como a independência foi feita, mas nunca ouviu dizer que "casa onde não há pão, todos ralham e ninguém tem razão" ? Se o nosso próprio país estava naquela época numa convulsão desmedida, acabado de sair de uma ditadura para uma liberdade, que muitos não souberam usar, com revoluções e contra revoluções às segundas, quartas e sextas, por favor sr.Rodrigues não veja "comunistas no prato da sopa", ou você ainda é daqueles bafientos que acredita naquela história da injecção atrás da orelha dos velhinhos ?
Adelaide Pereira.