E porque amanhã é dia de
Todos os Santos publico este belo escrito do meu amigo Alfredo Maioto, que servirá
para reflectir.
TEMPO DE SENTIR
- Aqui sentimos-nos pequenos,
insignificantes. Acredito que seja da magia do lugar.
Nem sequer olhou para mim ao
pronunciar esta frase, dizendo--a como se estivesse soltando um monólogo e
sabendo de antemão da minha concordância. Andámos juntos no liceu Alexandre
Herculano, sempre fomos amigos e, apesar de cada um ter seguido seu curso de
vida, a amizade manteve-se intacta ao longo do tempo. Agora ali estávamos nós,
pairando no ar uma leve ameaça de chuva, o cemitério cheio de pessoas que ali
foram colocar flores nas campas dos seus familiares e chorar, porventura,
saudades.
- Conheces essa sensação
estranha de não gostares de uma coisa mas achares que precisas dela? - Não
espera resposta, eu também não respondo. E continua:
- É o que se passa comigo:
não quero vir, mas venho. E depois, quando aqui estou, sou acometido por uma
saudade súbita e melancólica. Aqui possuo uma tranquilidade que não encontro em
lado algum, como que uma tomada de consciência da nossa fragilidade humana.
Sabes, Zé, aqui sinto que a vida deve ser vivida com o coração – e a minha há
muito deixou de ser!
Olha para mim fugazmente,
numa demonstração clara de que o pensamento não acabou, os olhos perdidos na
campa de sua mãe. Adivinho que o meu amigo Sérgio precisa de falar, e por isso
nada digo. Calo minhas próprias mágoas e torno-me ouvinte.
- Tenho muitas saudades de
minha mãe. Lembras-te dela? – Aponta lápide de mármore simples contendo a foto
da mãe. Se me lembro dela? Era Dezembro e chovia muito. Vindo da escola
refugiei-me em sua casa à espera que a chuva passasse. Dona Elvira, a mãe, ao
ver as minhas calças molhadas e minha cara de frio, saiu sem nada dizer mas
momentos depois chegou com uma chávena de cacau fumegante e o seu sorriso largo
sempre em seu rosto. Por brincadeira eu tratava-a por mãe Sorriso numa analogia
a uma canção muito em voga na época. Aquela foi a chávena de cacau mais terna
provada em toda minha vida! Era sempre assim, aquela senhora. Como a poderia
esquecer? Respondi ao Sérgio que não a esqueci, não. Pelo contrário,
lembrava-me perfeitamente dela. Ele acenou com a cabeça num agradecimento mudo.
Ao fundo várias pessoas
começaram a rezar o terço baixinho. A tarde ia caindo.
- Curioso, Zé! A gente sabe
que um dia vamos perder quem amamos, isso é mais que certo, mas só quando essa
pessoa parte é que nos apercebemos da sua importância em nossa vida. Devíamos
amar mais, amar com o coração! E tu, há quanto tempo perdeste a tua?
A pergunta não me seduz. Não
quero agora sentir memorias. Essas prefiro tê-las sozinho quando o silêncio me
permite mergulhar com ternura na saudade. Em frase curta e rápida, no intuito
de evitar a continuação do tema, digo que vai fazer nove anos dentro de dias. E
então estremeço. Já nove anos! Tudo tão rápido! Mas como passou tanto tempo se
o acontecimento se mantém tão vivo como se tudo tivesse sido ontem, ao ponto de
me revelar pormenores tão ínfimos e reactivando as dores do Inverno
mais triste de todos os Invernos? Disfarço a emoção olhando para o lado na
vã tentativa de procurar alguém. Ele repara, mas nada diz. Aproxima-se mais de
mim, quase sinto sua respiração.
- Já não sei rezar, Zé. – A
voz sai cavernosa, envergonhada- Esqueci quase tudo do que aprendemos na
catequese, perdendo-me na vida sem me dar conta. Más companhias, revolta com a
vida, um divorcio a complicar, dois filhos que amo…
Alguém coloca flores na campa
ao lado. Mais longe o choro de alguém que se sobrepõe ao piar dum pássaro.
Agora a chuva cai mansamente e abro o guarda-chuva abrigando também o meu amigo.
- Obrigado. – Olha para mim,
e vejo então uns olhos enormemente tristes. Amigável mas firme põe a mão na
minha e olha-me directamente, no olhar escrita uma funda súplica.
- Zé, eu queria rezar uma
Ave-Maria mas não sei. Só sei o começo, alguma palavra do meio e pouco mais. Eu
quero rezar. Me ensina a rezar, Zé!
Esforçava-se por conter uma
lágrima que ameaçava deslizar pelo rosto a qualquer momento. Então naquele
instante, em vez do homem desencontrado com seu próprio destino, cheio de
amarguras e cansaços, vi o meu colega de carteira na escola, sorridente e
brincalhão, a quem eu ajudava em Português e História, mas que ele retribuía
fazendo por mim os meus trabalhos de desenho. Abraçamo-nos em silêncio. A chuva
tinha parado de novo. E bem juntos, devido à chuva e à emoção, indiferentes a
tudo e todos quantos estavam no cemitério, rezámos emocionados muitas
Ave-Marias e muitos Pai Nossos…
Alfredo Maioto
3 comentários:
Muito bem, no momento certo e no dia adequado.Escrito com sentimento.
José Brito- P.Maçãs
Analisando bem esta matéria, diria que me vejo um pouco no que está escrito aqui.
Também eu no dia 1 me dirigi ao cemitério de São Gregório, para de uma forma homenagear os meus ante-queridos já falecidos.
Rui Paulo Soares- S.S.
Sr. Vitalino, muito interessante gostei e muito a propósito para o dia em questão.
Joca
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